Nara A. Peruzzo*, Valdevir Both**
Viver no Brasil durante a pandemia da Covid-19 tornou-se difícil e perigoso para quase toda a população. Mas tornou-se dramático para as populações pobre, negra, indígena, a maioria das mulheres, crianças e tantos outros grupos sociais penalizados pelas mazelas que assolam o país por séculos.
Mas como o Brasil se constituiu em um dos campeões em mortes e sequelização em consequência da pandemia? Como entender essa tragédia diante da existência de um Sistema Universal de Saúde, o SUS, que comprovadamente é mais eficiente para lidar com os contextos pandêmicos?
O Brasil do pós Golpe de 2016 e os impactos no SUS
O golpe da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, em nome do combate à corrupção, foi a forma de implementação da agenda ultraliberal no Brasil. De todas as medidas, a mais destruidora já naquele mesmo ano foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, que congelou os gastos públicos primários por 20 anos, excetuando as despesas financeiras.
À aprovação da Ec-95 seguiu-se a entrega do pré-sal e a progressiva privatização da Petrobrás e suas subsidiárias, um dos maiores patrimônios do povo brasileiro. A ampliação do desmatamento e destruição da biodiversidade. A reforma trabalhista de 2017, que em nome da suposta ampliação de milhões de empregos, retirou direitos e precarizou o mercado de trabalho.
Na área da saúde, as medidas do então presidente Temer não foram menos danosas. O então ministro da saúde, hoje deputado acusado pelo CPI da Covid-19 como articulador das tentativas de compra superfaturadas de vacinas, chancelou a aprovação da EC-95 que reduziu o financiamento do SUS. Dizia que o SUS era muito grande e precisava ser reduzido. Nessa esteira, aprovou a nova Política de Atenção Básica – PNAB e a respectiva regra do seu financiamento. Ao tirar a Atenção Básica como Bloco de Financiamento e reduzir as equipes e profissionais, diminuiu o orçamento e fragilizou a principal estratégia de cuidado em saúde da população. Como “alternativa” defendia a adoção de planos populares de saúde, que seriam privados e estruturados somente com alguns serviços a um preço baixo.
Essa agenda ultraliberal foi continuada com a eleição do presidente Bolsonaro. Eleito num processo eleitoral fraudulento, dado que o candidato Lula foi impedido de concorrer por um processo de Lawfare, Bolsonaro continuou, e continua, intensificando os retrocessos no país.
Logo que assumiu, Bolsonaro manteve a EC-95 e radicalizou o ajuste fiscal. À luz do dogma ultraliberal, acelerou as privatizações e continuou as reformas na área social, aprovando a reforma da previdência e deteriorando a proteção social do país. O impacto será profundo nas condições de vida e saúde da população. Desde a posse defere ataques sistemáticos à democracia e recorre às ameaças ditatoriais. Seu ímpeto autoritário foi marcado pelo Decretro 9.759/2019, conhecido como ‘decretão’, que reduziu drasticamente os espaços e canais de participação.
Na saúde seu então ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta anunciou em cadeia nacional que era contra a gratuidade no SUS. Comprometido com várias corporações médicas, acabou com o Programa Mais Médicos e o substituiu pelo Programa Médicos pelo Brasil, que significou uma diminuição drástica da cobertura médica no país, especialmente nas Equipes de Saúde da Família. Essa medida foi combinada com o Programa Previne Brasil, que alterou o financiamento da Atenção Básica e acabou com a transferência per capita com base no IBGE e passou a exigir o cadastramento dos cidadãos. Essa mudança tenderá a diminuir ainda mais os recursos da Atenção Básica.
É esse o cenário que a Pandemia da Covid-19 encontrou no Brasil no início de 2020 e que trataremos a seguir. Não é demasiado lembrar que o SUS, após a EC-95, reduziu seu financiamento de 15,8% da Receita Corrente Líquida em 2017 para 13,5% em 2019. Uma perda de mais de 22,5 bilhões de reais.
O Brasil de Bolsonaro na Pandemia e os desafios do SUS
O governo Temer e o início do governo Bolsonaro preparam um ambiente político, social e sanitário propício para proliferação do coronavírus. Quando a Pandemia chegou, o Brasil, que é fabricante de aviões, não detinha insumos básicos como máscaras, testes e respiradores. Profissionais não estavam preparados e foram expostos, junto à suas famílias, a altíssimos riscos. A Atenção Básica, bastante desestruturada, teve dificuldade de cuidar das pessoas e a estratégia foi centrada em leitos hospitalares que rapidamente superlotavam e eram insuficientes.
Bolsonaro, negacionista, não fez o elementar. Não coordenou nacionalmente as ações de enfrentamento ao vírus e, pior, mirou sua artilharia autoritária nos governadores, prefeitos e ministros do STF e tomavam medidas, mesmo que muitas vezes tímidas e aquém do necessário, para conter a pandemia. Propôs um auxílio emergencial inicial de míseros R$ 200,00, que foi ampliado para 600,00 pelo Congresso Nacional. Ridicularizou as milhares de vidas perdidas e suas famílias. Foi contrário a qualquer medida de isolamento, não usava máscara em eventos públicos e desencorajava a população a fazê-lo. Adotou uma política de uso e prescrição de medicamentos ineficazes contra o vírus, disseminou fake news sobre a suposta necessidade e eficácia das vacinas e o mais grave, tardou e atrapalhou o quanto pode a compra e desenvolvimento de vacinas.
A consequência foi um desastre humanitário sem precedentes no Brasil. Diante dele, o Senado Federal, ainda que com bastante atraso, reagiu e criou a CPI da Covid. Ela tem jogado luz às negociatas corruptas do governo Bolsonaro na aquisição das vacinas e, mais do que isso, tem reiterado a incompetência e a falta de responsabilidade política e ética do seu governo. Conforme depoimento de Pedro R. C. Hallal, morreram no Brasil entre 4.0 a 4.8 vezes mais pessoas se comparado à média mundial e que eram evitáveis. Conforme estudo de Susan Hillis, estima-se que mais de 113 mil crianças e adolescentes tenham perdido o pai, a mãe ou ambos para a Covid-19 entre março de 2020 a abril de 2021 no Brasil. São os órfãos da Pandemia.
Essa crise também foi ecoada pelos/as representantes dos movimentos e entidades no Relatório do Direito Humano à Saúde-2020, elaborado pelo CEAP e o Fórum Nacional de Defesa do Direito Humano à Saúde e apoio da Misereor. Conforme o Movimento Nacional de População de Rua – MNPR, diante da crise de 2020, houve um aumento grande da população em situação de rua. Grande parte dessa população sequer teve acesso à água potável, a banheiros, máscaras e álcool em gel. Conviveu com a redução de vagas nos albergues públicos e o término dos serviços assistenciais.
A CUT denunciou o aumento do desemprego e a precarização do trabalho em 2020. No segundo trimestre, conforme relatório do Dieese, um milhão e trezentas mil trabalhadoras domésticas sem carteira assinada perderam seu emprego. A UNEGRO destacou o aumento da violência institucional contra a população negra, o aumento da miséria e a volta do Brasil ao Mapa da Fome. Também destacou que o número de mortes maternas pela Covid-19 em mulheres negras é quase duas vezes mais se comparada com mulheres brancas.
A ANAIDS destacou que em 2020, em função da pandemia, exames de diagnósticos de HIV/AIDS deixaram de ser feitos, subnotificando ou invisibilizando casos. Relatou sérios problemas na dispensação de medicamentos e provocando a “falência terapêutica”. Além disso tivemos populações desalojadas em pleno período de Pandemia, dificuldades de acesso às redes básicas de atenção à saúde, aumento da violência doméstica contra a mulher, falta de medicamentos e recursos terapêuticos para as pessoas que convivem com a hanseníase, e, um aumento significativo das doenças mentais sem o devido cuidado da política pública de saúde.
A urgência de um novo Brasil e um SUS forte
O Brasil vive hoje um dos seus maiores desafios da sua história. A democracia sofre ataques ainda mais radicais do bolsonarismo que agora ameaça as eleições de 2022. O desemprego bate recordes, a inflação subindo e o Brasil voltando ao vergonho Mapa da Fome. Do lado do rentismo financeiro, os lucros foram os maiores da série histórica.
O SUS, diferentemente de 2020, quando o teto de gastos havia sido suspenso por conta da Pandemia, voltou a sofrer os cortes orçamentários 2021. Se o valor gasto em 2020 fora de 161 bilhões, para 2021 estão previstos apenas 131 bilhões, praticamente 30 bilhões a menos.
Mesmo assim, diante de todos esses ataques de Temer e Bolsonaro, o SUS mostrou-se grande ao garantir o cuidado e assistência aos/as brasileiros/as. Com o esforço dos gestores estaduais e municipais, dos conselhos de saúde, dos movimentos sociais e dos profissionais comprometido o SUS mostrou-se capaz de cuidar da população nesses tempos bicudos. Tem comprovadamente um dos maiores programas de vacinação do mundo e é a única alternativa assistencial para 75% da população.
Diante de umas das piores gestões pandêmicas do mundo, o desafio histórico que se coloca aos democratas e defensores do SUS, em aliança e a solidariedade internacional, é resistir ao desmonte do SUS e outras políticas de garantia de direitos e restabelecer as bases democráticas o mais urgente possível.
*Doutora em Educação-UPF e Educadora Popular do CEAP.
**Mestre em Filosofia-UNISINOS, Coordenador Executivo e Educador Popular no CEAP.
Referências
MORETTI, B.; FUNCIA, F. R.; OCKÉ-REIS, C. Orçamento Federal em Saúde em 2021: austeridade fiscal e clientelismo em meio ao recrudescimento da pandemia. Rio de Janeiro, GESP/UFRJ, 2021.
Brasil tem 1 órfão por covid a cada 5 minutos: ‘Pensamos que crianças não são afetadas, mas é o oposto’. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2021/07/22/brasil-tem-1-orfao-por-covid-a-cada-5-minutos.htm?cmpid=copiaecola. Acesso: 25/08/2021.
CEAP. Relatório do direito humano à saúde no Brasil 2020. Passo Fundo, EAB Editora, 2021.
PEDRO R.C. Hallal. Ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid/Senado Federal. Brasília, jun.2021.