Sumário

Centro de Educação e Assessoramento Popular

     

O SUS e a efetivação do direito humano à saúde

     

3ª Edição

     

Passo Fundo
Saluz
2021

 

© 2021 Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP)

Revisão: Araceli Pimentel Godinho
Ilustrações: Alexandre de Oliveira
Texto: Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP)
Colaboradores: Eliane Aparecida da Cruz; Fernando Antônio Gomes Leles;
Henrique Aniceto Kujawa; Jorge Alfredo Gimenez Peralta; Nara Aparecida Peruzzo;
Paulo César Carbonari; Valdevir Both

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Esplanada dos Ministérios, Bloco G, Anexo B. Sala 104B
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 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP)

O SUS e a efetivação do direito humano à saúde [recurso eletrônico] / Centro de Educação e Assessoramento Popular ; Organização Pan-Americana da Saúde. – 3. ed. – Passo Fundo: Saluz, 2021.

8 MB ; HTML.

ISBN: 978-65-992708-6-4

1.Saúde pública. 2. Sistema Único de Saúde – SUS. 3. Direito àsaúde. I. Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS. II. Título.

Catalogação: Marina Miranda Fagundes – CRB 14/1707


Palavras do Presidente do CNS

O Direito à Saúde só estará garantido se mantivermos formação para o controle social no SUS

Desde 2017, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), em parceria com o Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP), tem movido um grande esforço para a realização de oficinas responsáveis por formar agentes do controle social em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o Brasil. Isso é a prova de que a Comissão Intersetorial de Educação Permanente para controle social no SUS, junto aos conselheiros e conselheiras, está se dedicando ao cumprimento da Constituição de 1988, que garante a participação da comunidade na gestão das políticas de saúde.

De 2017 a 2019, cerca de 4 mil participantes, em sua grande maioria mulheres, tornaram-se multiplicadoras(es) da participação social brasileira, desenvolvendo também o intercâmbio de experiências sobre o controle social no SUS. A região com mais adesão foi o Nordeste, com 1.265 participantes, seguido do Sudeste, com 1.040. Em praticamente todas as regiões, a maioria dos(as) oficineiros(as) é negra. Ou seja, os dados mostram que o CNS e o CEAP estão contemplando a população brasileira na sua proporcionalidade, com foco em quem mais precisa.

Estamos conseguindo chegar em pessoas que, muitas vezes, ficam à margem dos processos formativos no Brasil e também do controle social. A partir dos dados que coletamos, estamos construindo mais conhecimento sobre quem são os potenciais atores e atrizes do controle social brasileiro. Isso reflete informações relevantes da participação social que construímos no nosso país, afinal a maioria da população negra é usuária do SUS.

Essa formação sinaliza ainda mais para a necessidade de atenção às políticas de saúde com recorte de raça e gênero. Outro dado de profunda relevância é que 41% dos participantes são trabalhadores(as) da saúde, ou seja, nossa atenção também tem sido múltipla, pulverizada em diferentes segmentos populacionais, principalmente em um momento de desfinanciamento do SUS, em que precisamos da junção das nossas diferenças para que possamos fortalecer nossas lutas em defesa da maior política social do mundo e das nossas vidas.

Importante destacar que, a partir das primeiras experiências, o curso foi sendo aprimorado com escuta aos participantes. Esse caráter colaborativo faz com que, agora, além das pautas políticas sobre o papel dos conselheiros e conselheiras, entremos também em temas ligados a gestão e orçamento, levando em consideração, inclusive, especificidades locais. Nesse sentido, esta publicação é um convite; nas próximas páginas, você vai encontrar um retrato de todo esse empenho em defesa do controle social no SUS.

Esta é mais uma ação da Política Nacional de Educação Permanente para controle social no SUS (PPNEPCSS), criada em 2006, após uma série de debates e oficinas. Se o poder emana do povo, é nossa obrigação sermos escuta para aprimorarmos nossos processos formativos. Com isso, estamos fortalecendo a população para que ela seja cada vez mais contemplada pelo direito humano à saúde. Somos sujeitos sociais e devemos deliberar sobre as políticas e sobre nossos destinos. Que possamos, a partir desta grande experiência, caminhar ainda mais longe. Tenha uma ótima leitura.

Fernando Pigatto
Presidente do Conselho Nacional de Saúde

Palavras da CIEPCSS

A Comissão Intersetorial de Educação Permanente para o controle social no SUS (CIEPCSS) é uma dentre as 18 comissões instituídas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) que atuam como instrumento de assessoramento ao Pleno, no que tange às temáticas relacionadas às políticas de saúde do SUS.

A CIEPCSS tem a especificidade no seu caráter transversal, considerando que educação permanente se faz no cotidiano e se dá na perspectiva de fortalecer os conselheiros e demais sujeitos dos movimentos sociais para que atuem na dimensão política de defesa da democracia, da saúde como direito humano e do Sistema Único de Saúde (SUS), com fundamento nos princípios da universalidade, equidade, integralidade e participação social.

A Comissão Intersetorial de Educação Permanente é formada por 22 integrantes, dos quais 12 são titulares e 10 suplentes; tal qual o regramento do CNS, segue a paridade em sua composição. Dentre as suas atribuições, estão a de acompanhar a implementação da Política Nacional de Educação Permanente para o Controle social no SUS (PNEPCSS), aprovada por meio da Resolução do CNS n. 363, de 11 de agosto de 2006; a formação de multiplicadores e formadores para o fortalecimento do controle social; e a articulação de uma rede nacional de educação permanente para o controle social.

É nesta perspectiva que o CNS/CIEPCSS, tendo como parceiro o CEAP, executou nos anos de 2017 e 2018 um projeto de “formação de formadores e multiplicadores para o controle social”, resultando na qualificação de cerca de 4.000 conselheiros e lideranças de movimentos sociais, impactando positivamente no fortalecimento das instâncias municipais e estaduais de participação social na formulação, gestão e deliberação da política de saúde, razão pela qual o pleno do CNS aprovou a continuidade do processo.

Assim, diante do atual cenário de disputa ideológica da saúde como direito humano versus saúde como mercadoria, da fragilidade do SUS decorrente da Emenda Constitucional n. 95, que congela recursos por 20 anos, da priorização de um modelo de atenção voltado à doença e não ao cuidado integral e da tentativa de desmonte dos espaços de gestão participativa, a CIEPCSS reconhece a importância estratégica da realização do projeto de formação para o controle social e aposta na ampliação de pessoas País afora, engajadas na luta em defesa da vida, e de um SUS de qualidade para toda a nossa população.

Esta cartilha, que foi cuidadosamente elaborada, se coloca como uma das ferramentas a serem utilizadas nos processos de formação, e certamente contribuirá para reflexão e compreensão dos brasileiros e brasileiras sobre quanto os modelos de sociedade interferem na concepção de saúde e na sua garantia como direito humano, e também nos espaços de controle social como forma de radicalização da democracia participativa.

Desejamos que esta cartilha ajude todas as pessoas a ampliarem seus saberes e compartilharem seus aprendizados, mobilizando corações e mentes para, juntos, sonharmos e lutarmos pelo SUS como a maior e mais inclusiva política pública brasileira.

Sueli Barrios
Coordenadora CIEPCSS

Introdução

“A saúde é um direito de todos/as e um dever do Estado.” (Constituição Federal de 1988).

Em 2017, o Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP) iniciou uma nova experiência formativa para o controle social no SUS, em parceria com o Conselho Nacional da Saúde – CNS, articulada pela Comissão Intersetorial de Educação Permanente para o controle social no SUS (CIEPCSS) e financiada pela Organização Pan-Americana de Saúde/ Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) no Brasil. Foram realizadas 70 oficinas formativas, à luz da educação popular, com conselheiros/as e lideranças sociais e populares de saúde em todos os estados brasileiros. Objetivou-se desenvolver ações que buscavam promover a atuação em processos de democratização do Estado, na garantia dos direitos sociais e na participação da população na política de saúde, reafirmando o caráter deliberativo dos conselhos de saúde, tendo em vista o fortalecimento do controle social no Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL/MS/CNS, 2006, p. 11).

Esse processo foi sistematizado e compilado em quatro volumes de relatórios que versam sobre a concepção do processo formativo, escolha e formação da equipe de educadores, a elaboração dos materiais educativos e análise do impacto das oficinas, perfis de participação, resultados alcançados. Esse relatório foi publicado e encontra-se disponível no site do CEAP (https://apsolutions.tec.br/ceaprs/). Essa experiência, como pode ser percebido nos relatos descritos e nas avaliações dos participantes, reafirmou a necessidade e a importância de processos formativos para o controle social e lideranças sociais a fim de fortalecer a luta pelo direito humano à saúde no Brasil. A experiência ratificou a importância de conceber a formação articulada com processos organizativos e com metodologia de multiplicação.

A partir disso, em 2019, renovamos a parceria CNS, CIEPCSS, CEAP e OPAS: desenvolveremos o Projeto de Formação para o controle social no SUS 2ª edição. O objetivo é “qualificar e fortalecer a atuação dos conselheiros/as da saúde e lideranças dos movimentos sociais que atuam na defesa do SUS em todas as unidades federativas do Brasil”.

Para subsidiar esse processo formativo, foram elaborados três materiais educativos: plataforma web, audiovisual e esta cartilha – a fim de constituírem-se instrumentos tanto da formação como da multiplicação do processo. Neste sentido, esperamos que a cartilha possa contribuir para o fortalecimento de espaços e dinâmicas organizativas populares para que possam sustentar as lutas pelo direito humano à saúde, fortalecendo a atuação institucional, mas ampliando a atuação para além dos espaços institucionais do SUS.

A cartilha usa linguagem simples e ilustrações que facilitam, ao leitor e à leitora, dialogar com as complexidades existentes na luta pelo direito humano à saúde no Brasil. Acreditamos que a participação social fica mais forte e tem mais qualidade quando as pessoas compreendem as estruturas e dinâmicas da sociedade. Precisamos ajudar a população a dar-se conta de que o SUS é público, comum, de todos – por isso, de cada pessoa; que é resultado da luta permanente pela garantia do direito humano à saúde; e, ainda mais, que fazer o SUS ser realizado e melhorado é parte da luta em sua defesa – que deve ser contínua e permanente.

Para que essa compreensão se enraíze, a população precisa saber dos diversos jogos de interesses e das disputas ideológicas que permeiam o campo da saúde. Precisa identificar os vários interesses em ação e, dessa maneira, entender por que nem sempre o interesse público está em primeiro lugar. Em resumo, o grande desafio é aprender que direitos são conquistas que vão sendo garantidas e melhoradas através da pressão, da mobilização, da luta e da organização social. Direitos não são “privilégios” nem “presentes” concedidos por governos “bondosos”.

Estruturamos esta cartilha em quatro grandes partes. A primeira quer ajudar a entender que, para compreender a saúde, é necessário pensar o todo da sociedade; a seção convida para refletir sobre as disputas ideológicas presentes no conceito de saúde; também quer provocar o debate sobre a relação entre o conceito de “saúde” e as concepções de Estado. A segunda parte trata da história da política pública de saúde no Brasil; procurar-se-á reconstruir os tensionamentos presentes na construção do SUS. A terceira parte é dedicada à participação social; procurar-se-á mostrar que a participação é uma forma de radicalização da democracia. Na quarta parte, o assunto é multiplicação e processos formativos de fortalecimento do SUS; procurar-se-á apontar algumas perspectivas para contribuir no processo de multiplicação para a defesa e o fortalecimento da luta pelo SUS.

Desejamos que esta cartilha seja um instrumento que contribua com o fortalecimento da participação social e que nos desafie continuamente para seguirmos juntos/as sonhando este sonho: o sonho-SUS.

Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP)


PARTE 01 – Compreender a saúde é pensar o todo da sociedade

1.1 O que é saúde?

Vamos nos perguntar: o que é saúde? Que relação fazemos entre saúde e doença? Relacionaríamos saúde com assistência (médicos, exames, remédios, profissionais de saúde, locais que prestam serviços na área da saúde)? Associaríamos saúde com cada pessoa individual: alguns são saudáveis e outros não? Nos reportaríamos ao contexto social, econômico, político e cultural em que vivem pessoas? Ou Será que relacionaríamos saúde, cuidado, assistência, indivíduo e sociedade?

Alguém poderia dizer, mas não precisa fazer este tipo de pergunta. Estamos acostumados e “cansados” de repetir o que é saúde na nossa luta cotidiana. Ninguém discorda que saúde “é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade”. Mas será que entendemos o que essa compreensão de “saúde” redigida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e reafirmada pelo Movimento da Reforma Sanitária no Brasil está querendo afirmar? Será que o óbvio aqui não se apresenta como aos óculos do avozinho do poema de Mário Quintana: ele os procurava por toda parte, menos no lugar onde realmente estavam, na ponta do seu próprio nariz? Estamos propondo problematizar o conceito de “saúde” que impulsiona nosso agir, nossa luta pelo direito humano à saúde. Esse conceito nos une, nos movimenta, nos põe em luta e fortalece o SUS como política pública de saúde.

O conceito de “saúde” proposto pela OMS tem por base uma ideia de ser humano entendido como um ser “inacabado” e vocacionado a ser mais – uma concepção defendida por Paulo Freire. Compreendê-lo desta forma é perceber que os seres humanos estão vocacionados a serem felizes e a viver uma vida que vale a pena ser vivida. Tradições indígenas, como a comunidade Sarayaku do Equador, traduzem o sentido da vida humana como a busca permanente pelo “sumak kawsay”, que quer dizer “bem viver”. A “felicidade” ou o “bem viver” são conceitos com múltiplos significados e sempre abertos a novos conteúdos; é muito difícil encontrar alguém que não queira ser feliz ou bem viver. Esse conceito de “saúde” também entende o ser humano como ser historicamente construído em contextos e no tempo. Daí porque, no decorrer da história, pode-se construir saúde, vida feliz e plena ou pode-se gerar morte, infelicidade, enfermidade. Ou, ainda, pode-se gerar vida feliz para alguns e de infelicidades para outros.

No modo de organização social em que vivemos e construímos, talvez seja impossível encontrar alguém que possa viver bem e/ou ser feliz sem estar protegido socialmente. Ter o direito a uma casa para morar, comida suficiente, saudável e saborosa, educação de qualidade, trabalho decente, saúde de qualidade, etc. é ter saúde. Afinal, dizia Heróphilo, que viveu antes de Cristo, “quando falta a saúde, a sabedoria não se revela, a arte não se manifesta, a força não luta, a riqueza é inútil e a inteligência inaplicável”.

Dentro desta compreensão, falar de saúde exige olhar para a sociedade: a casa comum onde vivemos, onde os seres humanos constroem suas maneiras de se relacionar e de viver. Assim como o ser humano é historicamente construído, a sociedade também é. Isto quer dizer que as formas como hoje nos organizamos – no Estado, no trabalho, na educação, na família, na igreja – são formas historicamente construídas; elas não são naturalmente dadas, como alguns apregoam por aí. Por isso, se foram feitas de um modo, podem ser transformadas ou mantidas, podem gerar mais vida para todos ou mais morte. A maneira plural como se manifesta a sociedade (índio, branco, negro, mulher, homem, criança, idoso, homossexual…) é outra qualidade dessa historicidade. Logo, a forma como estabelecemos as relações na sociedade também pode produzir saúde ou enfermidade, tanto física quanto psíquica e, muitas vezes, até genética. Através dessas relações sociais também se constrói formas de entender a saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS), na Carta de Princípios de 7 de abril de 1948 (por isso,Dia Mundial da Saúde), diz que saúde “é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade”. Essa compreensão carrega uma disputa que tem pelo menos duas vertentes: uma que defende a saúde unicamente como ausência de doença, somente na esfera individual, desvinculada do contexto social, econômico e cultural; outra que alarga a compreensão de saúde para além da esfera individual, reconhecendo que o modo e o local onde se vive influenciam fortemente na saúde. Esta compreensão mais ampla é a defendida pela Organização Mundial da Saúde junto aos governos e instituições dos países-membros.

A tendência “mercantil” da saúde olha as relações sociais pela lei da oferta e da demanda: para cada demanda, há uma oferta que, ao ser atendida, gera lucro. Ela compreende a saúde de forma reduzida e individual. O ser humano é compreendido como uma máquina: se estraga uma peça, é só trocar, mesmo que muitas vezes não identifique ou mude o que está provocando esse estrago. Assim surgem os especialistas para cada parte do corpo, visto cada vez mais aos pedaços e desconsiderando-se sua integralidade. Por exemplo, para cuidar do coração, existe o cardiologista; para a garganta, o otorrinolaringologista; para os olhos, o oftalmologista; e assim por diante. A especialidade por si só não é o problema se for o aprofundamento do conhecimento de uma especificidade como parte de um todo, isto agrega qualidade e resolutibilidade ao cuidado da pessoa. O problema é a forma como ela é compreendida e como ela compreende o ser humano: reduzindo o todo a uma parte. Por exemplo, é fácil de saber que problemas do coração não resultam somente da genética, podem ser provocados pelas condições de trabalho (estresse, altas jornadas, insegurança financeira), pela alimentação (obesidade ou outras consequências advindas do uso de agrotóxicos, transgênicos), pelos hábitos culturais (uso de bebidas e cigarros), entre outros fatores. Portanto, fogem unicamente da governabilidade do indivíduo, requerendo ações coletivas, uma vez que outras pessoas poderão sofrer do mesmo mal pelas mesmas razões. O problema dessa concepção de “saúde” é que desconsidera todos esses fatores e sua complexidade, e responsabiliza unicamente o indivíduo, desconsiderando totalmente o papel da sociedade e do Estado.

A outra tendência, que nasce justamente para fazer o enfrentamento à lógica mercantil, entende a saúde como um direito humano. Esse conceito traz os anseios dos movimentos sociais, para os quais a saúde é um direito de todos e todas, e sua garantia é responsabilidade primeira do Estado, reconhecendo a esfera individual e a dimensão coletiva do ser humano. Ou seja, considera a carga da biologia (genética), o contexto social, as dinâmicas do econômico e a vida cultural, ampliando a visão de “saúde”. Esse conceito está intimamente relacionado com a concepção de Estado, de sociedade e de desenvolvimento, ou seja, com os modelos de sociedades. Para essa perspectiva, a saúde é um bem público, comum, para o que cada um colabora, mas que, sem a construção de todos juntos, não se realiza para ninguém. Claro que, pelo avesso da saúde, a doença atinge cada pessoa individualmente, mas isso não significa que ela seja causada somente pelos fatores que dependem desse indivíduo; há uma multiplicidade de aspectos que concorrem para a realização da saúde, ou mesmo para a doença. Aliás, falar de direito humano à saúde é falar de uma conquista coletiva, de um bem que é essencial para o bem viver e que constitui um dos principais valores para as pessoas. Não é por acaso que no dia a dia as pessoas dizem “a saúde em primeiro lugar”, “se a gente tem saúde, vai atrás do resto”. Isso é assim porque a saúde significa a vida, e a vida é condição de todo o valor que possa ser produzido socialmente. Por isso, falar de saúde é falar de produção, reprodução e desenvolvimento da vida em suas mais diversas formas, para todos e todas, alargando inclusive o conceito de “saúde” para incluir todos os seres por serem interdependentes entre si.

A primeira lógica é fortemente defendida pelo modelo capitalista, hegemonizado pelos EUA, e que influenciou fortemente os demais países. Ela foi profundamente marcada pela revolução industrial, que, por desenvolver diferentes tecnologias aplicáveis à área da saúde, marcou muita influência também neste tema. Esse processo, inclusive, conduziu as políticas de saúde no Brasil na década de 1950, como veremos no segundo capítulo.

A segunda tendência começou a ganhar força com os estudos de alguns teóricos da Alemanha e da Inglaterra. Suas pesquisas mostraram que a saúde não se relacionava somente com as questões biológicas e individuais, mas também com fatores externos, como o meio social no qual as pessoas estavam inseridas. Essa posição reafirma a saúde como um bem coletivo, por isso direito de todos e responsabilidade do Estado.

O SUS nasce no Brasil no meio dessa disputa e toma partido: é contra a visão mercantilista de saúde, defendendo a saúde como direito humano. Portanto, a saúde é responsabilidade do Estado, o qual deverá disponibilizar parte do seu orçamento para garantir a saúde da sua população, em busca do bem viver de todos e todas. Assim, quando o Estado fornece dinheiro para a saúde, não está simplesmente gastando ou onerando o orçamento público, mas cumprindo sua função. Saúde não é gasto, é investimento!

As duas lógicas não são descoladas dos modos de compreender a organização da sociedade, ou seja, da economia, do Estado, das políticas, dos modelos de políticas públicas; enfim, elas estão intimamente ligadas aos modelos de sociedade e, portanto, tanto a responsabilidade quanto o seu financiamento dependerão do modelo de sociedade hegemônico.

Trataremos, neste bloco, de quatro modelos de sociedade: Capitalismo Liberal, Socialismo, Estado de Bem-Estar Social e Neoliberalismo. A abordagem não tem a pretensão de detalhá-los; parte-se do pressuposto de que nenhum deles se constituiu em “estado puro” e que, por isso, não há “superação” completa de um modelo pelo outro. A abordagem preferencial desses quatro modelos tem a pretensão de construir pistas de leitura e de ação para o período atual. Busca-se contribuir com a luta por uma proteção social brasileira que afirme, entre outras, a saúde como qualidade de vida e como direito humano. Isso significa uma opção política que visa à construção de relações sociais que potenciam o “ser mais” das pessoas em detrimento daquelas que as submetem ao “ser menos”.

Cuidado! Não pense que esteja entrando em um trem e que em cada modelo se faça uma parada, isolada das outras; nem mesmo que o último modelo descrito significa o ponto de chegada. Eles são modelos ideológicos e estão constantemente em disputa na sociedade, patrocinados por uns ou por outros dos agentes sociais, mesmo que, em cada momento, um deles possa se mostrar mais forte, mais hegemônico, do que os outros.

Dia Mundial da Saúde, 7 de abril Dia Mundial da Saúde é comemorado desde 1950. A data de 7 de abril foi escolhida por representar a primeira assembleia da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948. Nessa primeira assembleia, foi definido o conceito de “saúde” ampliado e não focado somente nos aspectos biológico e individual. O Dia Mundial da Saúde deve ser um momento privilegiado para contribuir na luta pelo direito humano à saúde. Nesse dia, conselheiros, lideranças, gestores, profissionais e demais atores sociais são incentivados a organizar atos, audiências públicas, seminários, caminhadas… enfim, atividades que chamem a atenção da população em geral para a luta pela qualidade dos serviços, pela humanização e outros aspectos centrais da saúde como direito humano e pela defesa do SUS e da democracia.
EC-95 e o SUS Saúde não é gasto, é investimento. No entanto, não é o que a Emenda Constitucional n. 95, aprovada em dezembro de 2016, explicita. A EC-95 criou um novo Regime Fiscal para o Brasil, congelando os “gastos” públicos por 20 anos, alegando a necessidade de reequilíbrio. No entanto, os gastos com juros da dívida ativa da União não foram congelados, mas os recursos para Saúde, Educação, Seguridade Social foram congelados. O desfinanciamento da Saúde decorrente da EC-95 contribui para o desmonte do SUS, fortalece o “mercado da saúde” e a guinada biomédica. O resultado disso poderá ser a oferta de ações e serviços de saúde mais precários, especialmente para os 70% da população que hoje dependem exclusivamente do SUS. Um alerta importante da ciência: estudos muito sérios, concluíram que essa retirada de recursos da Saúde pode gerar muitas mortes e sofrimentos. Os impactos da redução de programas sociais podem levar, até 2030, até 23 mil mortes de crianças menores de 5 anos e a um aumento de 124 mil internações (RASELLA et al., 2018). Tudo isso pode e deve ser evitado! Para acompanhar o quanto a União (Governo Federal) investe em Saúde anualmente o site  Auditoria Cidadã elabora gráficos comparando todas as suas despesas.

1.2 Modelos de sociedade

1.2.1. Capitalismo liberal

Os séculos XVII e XVIII foram marcados por profundas transformações na Europa. Na economia, a invenção da máquina a vapor e da indústria, aliada ao grande êxodo forçado dos trabalhadores rurais para os centros urbanos, produziu o capitalismo industrial. O capitalismo é um modelo de desenvolvimento e de sociedade que prioriza o aumento e acúmulo de capital somente para um pequeno grupo que detém os meios de produção. A “invenção” da indústria ajudou os capitalistas a acelerar e ampliar seus lucros.

Para que esse sistema funcionasse, era preciso ter muita mão de obra, e de baixo custo. Na lógica dos capitalistas, os preços são determinados pela oferta e demanda: quando há muita demanda, o valor da oferta aumenta; quando há muita oferta e pouca demanda, o valor da oferta baixa. Nesse caso, a mão de obra para as indústrias era uma demanda: necessitava-se de trabalhadores, do contrário as indústrias não funcionavam. Os trabalhadores eram fator decisivo neste cálculo, sobretudo o valor pago pelo seu trabalho: maior remuneração equivalia à redução na taxa de lucro, e vice-versa. Por outro lado, era necessário fazer com que os trabalhadores precisassem da indústria, criando neles a sensação de que essa era sua única alternativa. Para ajudar nesse processo, foi “criada” a crise no campo, forçando os pequenos agricultores a venderem suas poucas terras para grandes proprietários que produziam a matéria-prima, como a lã, por exemplo. Sobrou para os ex-agricultores o trabalho assalariado oferecido pelas indústrias como “a grande” alternativa para sua subsistência. Se antes a sua subsistência vinha da terra, agora vinha do salário pago pelos donos das indústrias.

A promessa foi de que a vida urbana seria o lugar da liberdade e da felicidade, uma vez que seus contextos de vida eram de exploração e dependência dos senhores feudais. O significado de “liberdade” construído nesse contexto é fundamental, pois ainda influencia nos dias atuais. John Locke , importante teórico do século XVII, dizia ser a liberdade, ao lado da vida e da propriedade, o direito mais importante. Para ele, a liberdade só se efetivava individualmente. Acreditava que a felicidade é fruto da afirmação dos interesses do indivíduo, concepção que está na base do individualismo predominante até hoje. Nascemos e somos individualmente. A sociedade, fundada por um pacto artificial, deve estar a seu serviço. O outro, a natureza, a economia, o Estado, as políticas públicas devem estar a serviço do indivíduo. Nesse contexto, ocorre uma grande transformação cultural, pois a lógica de organização da vida, das relações sociais e econômicas, aquilo que até então acontecia no campo, passou à lógica urbana, marcada pelo controle do tempo (“sem tempo”), pela disciplina do trabalho, pela alta carga de trabalho, pelas péssimas condições de moradia, além do egoísmo, do individualismo e da competição. Liberdade e felicidade são sentimentos individuais que cada um deve conquistar, por mérito seu e para si, desconstruindo a noção de que a liberdade e a felicidade estariam na coletividade – é a fábula das abelhas do Mandeville (se cada uma faz sua parte, buscando satisfazer seus próprios interesses privados, todos ganham: “vícios privados, benefícios públicos”, esquecendo-se de que as abelhas são operárias sob o comando da “rainha” e que, para que produzam o mel, polinizam milhares de flores de modo colaborativo).

A servidão, tida como legítima no período feudal, passa, aos poucos, a ser substituída pela vida assalariada, pois, naquele momento histórico, era melhor ter mão de obra “livre” mas sem propriedade e procurando emprego. Essa situação aumentava a concorrência entre os trabalhadores e diminuía a necessidade de valor a ser pago pelo trabalho realizado (lei da oferta e da demanda). Sugerimos a leitura do livro de Leo Huberman intitulado A riqueza do homem , que mostra como se deu essa transição e, principalmente, como o dinheiro tornou-se capital.

No período, os trabalhadores eram submetidos a uma dura disciplina e sua jornada de trabalho chegava a 16 horas por dia, incluindo mulheres e crianças. Suas condições de vida eram precárias: comiam mal, suas moradias eram precárias, dormiam pouco e dentro das indústrias o ambiente era muito perigoso. Submetidos a essas condições, a saúde da população era precária e as pessoas passavam por grandes sofrimentos, sem contar que a expectativa de vida era muito baixa.

Inexistiam políticas públicas para atender as demandas de saúde das pessoas e garantir-lhes qualidade de vida. Afinal, construiu-se a ideia de que o papel de garantir a saúde era de cada indivíduo e de sua família. O máximo a que se chegou foi a algumas políticas para garantir que a mão de obra estivesse em condições plenas para o funcionamento da indústria, sem que isso significasse custo para os seus donos. A chamada “questão social” era tratada como questão de polícia.

O Estado, que teria que ser mínimo, seria responsável apenas pelos chamados direitos civis (reger sobre a proteção da propriedade, da liberdade…) e políticos (reger sobre quem poderia e de que modo poderia participar no poder do Estado). Não deveria se ocupar e nem gastar com a garantia dos direitos sociais (saúde, saneamento básico, moradia, alimentação, educação), bem como não deveria ditar as regras da economia, que deveria ser organizada pelo mercado. Como liberais, diziam que o Estado sempre governa demais e, com isso, atrapalha o bom funcionamento econômico. Afirmavam que as regras que faziam a economia capitalista funcionar se davam “naturalmente” no próprio jogo, a famosa  “mão invisível” proposta por  Adam Smith.

Mesmo que se afirmasse que o Estado governava demais, não se permitia que a população aspirasse ao poder, muito menos o controlasse. A democracia foi reduzida ao modelo representativo, no qual o “governo” era escolhido pelo voto. O problema é que nem todos tinham esse direito de voto (analfabetos e mulheres não podiam votar, por exemplo). Logo, a representatividade não era do povo, mas de uma parte dele. Além disso, a falta de informações das ações do Estado, mesmo que já tivéssemos grandes meios impressos e rádio (final do século XIX), não permitia um acompanhamento e incidência política das pessoas, e as condições necessárias para participar junto ao Estado eram inexistentes ou vistas com “maus olhos”.

Nesse contexto histórico, surgiram várias epidemias que mataram muitas pessoas, além da precariedade das condições de viver bem física, psicológica e moralmente. A compreensão de saúde que perpassa aqui é aquela da tendência mercantil, sendo responsabilidade unicamente do indivíduo o cuidar de si, retirando-se do Estado toda e qualquer responsabilidade, bem como restringindo-se a ação do Estado nessa área. Quando o Estado promovia alguma ação, era sempre a partir da lógica de garantir mão de obra nas fábricas.

Os povos Bantu Diferente da concepção capitalista, para os povos Bantus da África do Sul, berço da humanidade, o imperativo ético é o ubuntu, que significa “sou porque nós somos”. A ênfase está no “nós”, portanto, na relação, que inclui uma cosmovisão integrativa com o divino (Oludumaré/Nzambi/Deus, Ancestrais/Orixás), a comunidade de humanos e a natureza (seres animados e inanimados). Uma consequência possível destas concepções distintas é o conceito de “proteção social e saúde”. Para o individualismo moderno ocidental, estou protegido e tenho saúde caso o meu corpo individual esteja bem. Para o comunitarismo banto, estou protegido e tenho saúde caso o coletivo esteja bem, ou seja, se o contexto no qual vivo promove a minha saúde.
1.2.2. Socialismo

O contexto do capitalismo industrial gerou uma sociedade ainda mais desigual, e as condições de vida da maior parte dos trabalhadores eram precárias. Nesse período, conforme  Karl Marxe outros, o capitalismo dividiu a sociedade em duas classes: burgueses e proletários. Os primeiros eram os proprietários das indústrias, donos dos meios de produção; os outros, o proletariado, donos da força de trabalho, roubada pelo processo de exploração do trabalho implementado. A divisão da sociedade em classes permitiu que, de um lado, a riqueza gerada coletivamente fosse concentrada por poucos, enquanto, do outro lado, a pobreza e a miséria se espalharam para a maioria da sociedade.

As condições de vida sofridas e precárias levaram os trabalhadores a se reconhecerem e organizarem como classe social, fazendo a crítica e o enfrentamento a esse modelo de sociedade. A crítica consistia na denúncia de que a liberdade e a felicidade prometidas para todos tornaram-se realidade somente para o pequeno grupo da burguesia. Além disso, o fato de os capitalistas liberais afirmarem que o Estado não deveria “se meter” na economia e não se responsabilizar pelas condições de saúde da população era apenas para esconder que o Estado servia a burguesia e a deixava enriquecer às custas da força de trabalho dos pobres trabalhadores.

O Movimento Operário denunciava as péssimas condições de vida no capitalismo industrial e passou a responsabilizar os donos das indústrias pela sua situação09. Começou a enfrentar a concepção de “proteção social” que se restringia unicamente à responsabilidade individual e familiar, afirmando que as condições sociais e de saúde são produzidas coletivamente, especialmente pela ação deliberada dos donos das indústrias e pela omissão do Estado. Sobre este último, quando agia, não era para ampliar a qualidade de vida e a saúde das pessoas, mas para submeter as pessoas a lógicas disciplinares policialescas que contribuíam com a formação de uma força de trabalho dócil politicamente e útil economicamente. Contra a omissão e a polícia sanitária, passou a exigir “proteção social” aos trabalhadores e que os custos financeiros fossem assumidos pelos donos das indústrias.

A reação organizada ocorreu através de grandes greves dos trabalhadores e por revoltas populares. Mais tarde, esses movimentos desenvolveram teorias e práticas políticas para disputar e gerir as instituições sociais, inclusive o Estado, desde princípios diferentes daqueles do capitalismo liberal – são as experiências comunistas e socialistas que, em grande parte, se configuraram a partir de revoluções sociais.

Esses grupos partiram do pressuposto de que as sociedades são construções humanas e, por isso, passaram a disputar modelo de sociedade, já que o modo capitalista não contemplava uma organização que garantisse o bem viver para todos, pois gerava riqueza mas a concentrava para alguns, enquanto a imensa maioria vivia a pobreza, a miséria, o sofrimento. Dialogaram com experiências culturais milenares que enfatizavam a importância da solidariedade econômica, social e política. Uma das principais preocupações era criar mecanismos contra o acúmulo de capital privado, coletivizando os meios de produção. Para tal, o Estado deveria assumir papel central na coordenação econômica e na implementação de políticas públicas de proteção social para as pessoas.

No socialismo, o princípio que rege é a solidariedade, sobre a qual é organizada a sociedade. Não tira a liberdade de escolha, mas permite condições equitativas para que todos possam fazer suas escolhas, entendendo o ser humano como um ser aberto a ser mais, e que esta condição garante equidade social, política, econômica e cultural. A riqueza deveria ser gerada e destinada àqueles que a produzam, não o contrário, ou seja, não haveria concentração de riqueza para poucos em detrimento da ausência da riqueza de muitos, como no modelo capitalista. O papel do Estado é investir no cuidado de seus cidadãos em todas as esferas, ou seja, a responsabilidade com a saúde do povo é do Estado, uma vez que essa está alicerçada na compreensão de “saúde” como proteção social.

Fruto desse modelo de sociedade, nascem concepções de “saúde”. É o caso da concepção que enfatiza os cuidados primários em saúde. Ela foi discutida na conhecida  Conferência de Alma-Ata, de 1978, na República do Cazaquistão, que era uma república socialista da União Soviética. A Declaração final da Conferência Internacional de Atenção Primária à Saúde, realizada na cidade de Alma-Ata, promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), foi uma resposta às disputas ideológicas em torno do conceito de “saúde”. No contexto da conferência, estava acentuada a disputa entre uma perspectiva mercantil e uma perspectiva social-protetiva. A Conferência de Alma-Ata reafirmou o conceito de “saúde” da Organização Mundial da Saúde, constituindo-se em espaço de resistência; além disso, atribuiu ao Estado sua responsabilidade, ressaltando a importância da Atenção Primária de Saúde – APS (ou, como anteriormente conhecida no Brasil: “Atenção Básica”), reconhecendo a saúde como um direito humano fundamental. Vejamos:

a) Saúde é direito humano fundamental […] É a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos […] 4) É direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde. 5) […] os cuidados primários de saúde constituem a chave para que essa meta seja atingida, como parte do desenvolvimento, no espírito da justiça social.

Segundo Tedros Adhanom Ghebreyesus (que assumiu, no dia 1 de julho de 2017, como primeiro africano diretor da OMS), “cerca de 400 milhões de pessoas não têm acesso nenhum a cuidados básicos de saúde. A visão coletiva da Organização Mundial da Saúde deve ser um mundo em que todos possam alcançar vidas saudáveis e produtivas não importando quem sejam ou onde vivam.” (ONU, 2017).

Na mesma perspectiva, está, por exemplo, o modelo de saúde cubano. Assentado na promoção da saúde, conseguiu universalizar a saúde a todos os seus habitantes. O modelo é reconhecido pela OMS. Em 2014, sua diretora-geral, Margaret Chan, enfatizou os esforços cubanos em colocar a saúde como pilar essencial do desenvolvimento: “Uma das coisas que mais me impactam em Cuba é o fato do sistema de saúde funcionar não apenas na interface com o paciente, mas que estabelece uma estreita relação com os processos de pesquisa e desenvolvimento da indústria farmacêutica e biotecnológica, assume um enfoque intersetorial para o tratamento das diferentes doenças e se preocupa com a educação e a promoção da saúde. Em Cuba, o principal objetivo é ofertar serviços à população”. (ACOSTA, 2014). Outro fator importante em relação à assistência de saúde cubana é que ela é gratuita e de qualidade para todos. Para reforçarmos a importância disso, podemos lembrar do filme  Sicko – SOS Saúde, de Michael Moore. O cineasta mostra bombeiros e voluntários que ajudaram a salvar vítimas do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center, na cidade de Nova Iorque. Com sequelas do ataque devido à quantidade de fumaça inalada, necessitavam de cuidados permanentes em saúde. Em seu país, devido à compreensão de que a saúde é responsabilidade de cada um, não conseguiram tratamento, pois não dispunham de recursos, e o Estado é omisso, não interfere. Em Cuba, eles receberam o cuidado e o tratamento necessários gratuitamente. É uma cena emocionante, pois muitos deles já tinham hipotecado a própria casa para manter o tratamento e a assistência, e, quando ultrapassaram a fronteira, tiveram o cuidado, o tratamento gratuitamente, além de, obviamente, poderem voltar a viver sem sofrimentos.

Mesmo que as experiências históricas comunistas e socialistas sejam abertas a críticas, tiveram e ainda têm um papel importante na problematização de modelos de sociedade e na discussão sobre o papel do Estado.

1.2.3. Estado de bem-estar

As raízes do Estado de Bem-Estar Social, construído em alguns países da Europa após a II Guerra Mundial, devem ser buscadas na luta organizada dos trabalhadores e em suas reivindicações por melhores condições de trabalho, salários, qualidade de vida e pela garantia de direitos por parte do Estado, mas também no processo de reorganização capitalista decorrente dessas pressões.

A reivindicação por proteção social por parte dos trabalhadores, as ideias e as experiências socialistas criaram a necessidade de repensar a importância do papel do Estado nessa garantia. Isto é, o Estado assumiria para si o cuidado não só com os direitos civis e políticos, mas também com os direitos sociais, a fim de garantir o cuidado com os cidadãos. Esta não foi uma conquista fácil e sem tensionamentos; pelo contrário, foram necessários muita organização dos trabalhadores, persistência e anos de luta para que se pudessem provocar mudanças na forma de o Estado exercer seu papel. Muitos trabalhadores foram criminalizados e perseguidos por liderarem a luta em prol dos direitos sociais. Nasceram, portanto, da luta e da organização da classe trabalhadora, explorada pelo modelo econômico e desamparada socialmente pelo Estado.

Portanto, são as lutas sociais que forçam o capitalismo a se repensar e se reestruturar. Ainda no século XIX, o chanceler alemão Otto von Bismarckcriou um sistema público de vigilância dos acidentes de trabalho e um seguro que protegesse as pessoas das doenças, acidentes, invalidez laboral e velhice. Era o final do século XIX, e foi uma resposta às greves e às organizações dos trabalhadores em todo o mundo, além da necessidade de unificação do Estado alemão. Ele propôs que esse sistema fosse custeado pelas empresas, pelos trabalhadores e pelo Estado. O sistema criado por Bismark é chamado de “seguro social”, uma vez que mantém semelhança com os seguros privados, ou seja, os direitos sociais são pensados a partir e para o trabalhador e, por isso, seu acesso é condicionado a uma contribuição anterior; o desempregado ou aquele que trabalhava na informalidade não tinha acesso a esse seguro (assistência, saúde, educação…). Esse seguro social é financiado pela contribuição direta do trabalhador e do empregador, tendo como base a folha de pagamento. As contribuições são geridas pelo Estado, o qual também contribui para o seu financiamento.

Esse modelo, mesmo que dentro dos limites do capitalismo, traz uma mudança na forma de compreender e agir diante das condições de vida das pessoas. Gradativamente responsabiliza o Estado e os donos dos meios de produção pelas condições sociais da população. Deste modo, cria um modelo de proteção social limitado aos trabalhadores que implica, além da contribuição destes, a taxação do capital e a tomada de maiores cuidados dentro das próprias fábricas.

No contexto de duas grandes guerras e da crise do acúmulo capitalista de 1929, a proposta de Bismark é criticada por economistas como Keynes, daí porque foi sendo reformulada e ganhando novos contornos. Em 1942, o inglês  William Henry Beveridge propôs que a proteção social fosse estendida a todas as pessoas, sem que fosse exigida a condição de trabalhador formal ou a contribuição direta dos “beneficiários”. Segundo ele, à sociedade e ao Estado caberia o papel de combater cinco males que impedem o bem-estar das pessoas: a escassez, a doença, a ignorância, a miséria e a ociosidade. Para ele, com o enfrentamento desses males, estar-se-ia protegendo socialmente todas as pessoas e garantindo-lhes qualidade de vida antes, durante e depois da relação formal de trabalho. Foi Beveridge que propôs a instituição Welfare State (Estado de Bem-Estar Social), defendendo a universalidade dos direitos sociais: todos os cidadãos estariam protegidos socialmente, independentemente de estarem trabalhando ou não. Seu financiamento seria garantido pelo caixa geral do Estado, que teria o papel de cobrar impostos para viabilizar a universalidade das políticas.

Essa luta e acúmulos, que têm sua continuidade durante a Guerra Fria (capitalismo X socialismo), no decorrer da segunda metade do século XX, foram incorporados pela  Declaração Universal dos Direitos humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, dos quais o Brasil é país signatário e, por isso, não apenas os reconhece como também se compromete e responsabiliza pela sua efetivação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo XXV, declara:

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.

O conceito de “saúde” que depreende dessa declaração exige entendê-la como direito humano e, portanto, como universal, indivisível e interdependente.

Afirmar que a saúde é universal é reconhecer que o acesso à saúde é para todos (pobre, rico, branco, negro, índio, mulher, homem, criança, idoso, trabalhador formal ou informal, desempregado…). Sendo para todos, não deve haver privilégio de um em detrimento de outro. Porém, é necessário entender a universalidade no marco da equidade; isso significa respeitar as especificidades de cada um, sobretudo dos que estão em situação de maior vulnerabilidade, garantindo o acesso de acordo com as necessidades específicas. Do contrário, corremos o risco de ter um sistema que não é universal, pois não atende as reais necessidades da população.

A indivisibilidade dos direitos significa que os demais direitos (educação, moradia, alimentação, emprego…) são igualmente fundamentais. Portanto, nenhum direito é mais nem menos importante do que os demais. Isso quer dizer que não podemos separar os direitos; não se pode, por exemplo, em função de limite orçamentário, ou por qualquer outro motivo, querer garantir primeiro o direito à saúde e deixar para o futuro a educação ou a moradia.

Se os direitos são indivisíveis, consequentemente são interdependentes. Ter saúde de qualidade depende da efetivação de outros direitos como moradia adequada, saneamento básico, educação, emprego, alimentação. Do contrário, não é possível dizer que temos o direito à saúde garantido. Portanto, ao compreender a saúde como direito humano, exige-se mais do que apenas consultas médicas ou exames, mas todas as ações e serviços necessários para o bem viver, que condicionam e determinam a saúde. É importante lembrar, mesmo que trataremos disso no próximo capítulo, que o Movimento da Reforma Sanitária no Brasil reconstruiu a concepção de “saúde” ratificada na Declaração Universal de Direitos Humanos e esboçada no plano de Seguridade Social de Beveridge. Esse conceito de “saúde”, entendida como direito humano, foi aprovado pela VIII Conferência Nacional de Saúde e ganhou força de Lei na Constituição de 1988. Porém, o enunciado constitucional da “saúde como direito de todos e dever do Estado” não evita que, no cotidiano da prática do fazer saúde, aconteça o tensionamento de dois conceitos distintos: um centrado na abordagem individual e que, em muitos casos, transforma a saúde em objeto de lucro; e outro que tende a uma abordagem individual-coletiva, e concebe a saúde como direito humano.

A saúde pública no Canadá Você sabia que, no Canadá, pobres e ricos têm o mesmo sistema de saúde? A saúde no Canadá é um modelo de saúde financiado 100% pelos fundos públicos, sendo gerido pelo Estado. Trata-se de uma experiência concreta similar à luta do Movimento da Reforma Sanitária no Brasil, que originou o SUS. Saúde pública universal e gratuita é possível!
1.2.4. Neoliberalismo

É possível afirmar que o Estado de Bem-Estar foi o resultado “possível” de uma tensão política entre duas forças sociais: os trabalhadores e os donos do capital . Os primeiros, cada vez mais organizados, pressionavam por melhores condições de vida e mudavam regimes de governo; os segundos, diante das diferentes ameaças, abriam-se a “negociações forçadas” no intuito de preservar o sistema capitalista.

Mas também é muito importante lembrar que, durante o século XX, assim como em toda a modernidade, as agendas de luta não se limitaram em torno dos sujeitos e agendas descritas nos modelos anteriores. Aliás, em muitos casos, os modelos anteriores tiveram dificuldade de priorizar ou construir alternativas de superação desses problemas e violações de direitos. É o caso, por exemplo, da luta contra o machismo e os direitos das mulheres, liderada pelo movimento feminista nos diversos países; a luta contra o racismo e o direito dos negros, liderada pelo movimento negro; a luta contra a destruição do meio ambiente em prol da sustentabilidade ambiental, pautada pelo movimento ecológico; a luta contra a homofobia e os direitos dos homossexuais, coordenada pelo movimento LGBTQIA+. Esse fato resultou, o que ainda é muito comum nos dias atuais, na construção de sistemas de proteção social nos quais inexistiam e inexistem políticas públicas com enfoque equitativo.

Mesmo reconhecendo o Estado de Bem-Estar como resultado possível, e por isso limitado do ponto de vista da transformação das bases que estruturam a exploração capitalista e outras desigualdades, ele possibilitou avanços na compreensão dos direitos humanos e do direito à saúde. Contudo, muitos liberais fizeram, desde a sua origem muitas críticas. O centro da crítica se dá novamente sobre o suposto excesso de governo por parte do Estado, especialmente na economia e na alocação de recursos às políticas públicas sociais universalizantes. Milton Friedman , pensador da segunda metade do século XX, chamará as políticas de “proteção social de programas paternalistas” e defende a sua extinção. Segundo Friedman, “eles enfraquecem os alicerces da família, reduzem o incentivo para o trabalho, a poupança e a inovação; diminuem a acumulação de capital; e limitam a liberdade […]. São uma autêntica subvenção à preguiça.” (FRIEDMAN apud NUNES, 2013, p. 19). Essa concepção é muito comum em diversos países, inclusive no Brasil.

Essa ação estatal que chamam de paternalista, agora novamente condenada, estaria na base da disfunção capitalista do século XX. Este, por sua vez, constitui-se agora sob uma base financeira. Se, no capitalismo industrial, o acúmulo de capital se dava centralmente a partir da produção industrial, agora, dá-se a partir das grandes instituições financeiras. Destas dependem as indústrias, mas dependem cada vez mais os Estados contemporâneos, que emitem títulos da dívida que vão parar nas mãos do mercado financeiro. Isso significa que os grandes capitalistas, em vez de investirem no desenvolvimento produtivo, preferem investir seu dinheiro na especulação financeira e comprando a dívida pública, mesmo que isso signifique comprometer a vida de milhões ou bilhões de pessoas, como na recente crise econômica iniciada nos EUA em 2008.

Mas, agora, mais do que denunciar o excesso de governo por parte do Estado, exige-se um exercício governamental que reconheça as regras do mercado. Mais do que deixar fazer, ele deve funcionar a partir das regras do mercado e, enquanto tal, fazer funcionar o mercado. Essa lógica de pensamento é denominada “neoliberalismo” e teve como pioneiros na implementação  Reagan nos EUA e  Thatcher na Inglaterra, no início da década de 1980.

Na lógica neoliberal, a proteção social é entendia como “mercadoria”, reafirmando a tendência mercantilista de saúde. Os serviços de saúde devem ser um negócio rentável. No entanto, para ela poder gerar lucros, precisa estar inserida na lógica do mercado (oferta e demanda), e com interferência mínima do Estado. Neste sentido, a indústria farmacêutica, hospitalocêntrica, os diversos segmentos de tecnologia de diagnósticos por “aparelhos” e a indústria alimentícia não acham interessante o Estado cuidar das pessoas desde os seus contextos, pois isso diminuiria as doenças e poderia impedi-los de lucrar. Logo, a responsabilidade deve ser jogada para cada um, retirando-se o cuidado à saúde do contexto e remetendo-o somente à questão biológica. O trabalhador é também “empreendedor” do cuidado de si.

A consequência da proposta neoliberal para a concepção de políticas públicas universais é sua desconstrução, entre outros motivos, pela “falta” de recursos para o seu financiamento. Esse processo acontece a partir de um “golpe semântico” que se dá na base da concepção dos direitos humanos construídos no século XX. Para os neoliberais, não se estaria abrindo mão da universalidade, mas a universalidade ganharia novos contornos. Significa dizer que o Estado teria um papel somente com as pessoas desprovidas de condições financeiras para garantir a sua proteção, ou seja, que o Estado deveria cuidar somente dos pobres, mas esse cuidado restringir-se-ia à concepção médico-industrial, e não cuidar a saúde como proteção social. Desta forma, a proposta é substituir os sistemas universais por uma cobertura universal; isto quer dizer que o SUS não cabe numa concepção de Estado neoliberal, regido pelas leis do mercado, centrado num modelo biomédico. O SUS é compreendido dentro de um modelo de desenvolvimento ou de um modelo de sociedade em que o Estado é responsável pela seguridade social. Isso nos ajuda a compreender por que o SUS tem tanta dificuldade de funcionar, e sempre sofre críticas de quem lucra com as doenças.

Por isso, como já afirmamos, é fundamental que tenhamos claro que a efetivação do SUS está vinculada a um modelo de Estado e de desenvolvimento. As experiências construídas durante os séculos XIX e XX devem servir de aprendizado para que continuemos buscando construir, junto com o conjunto de iniciativas na atualidade que luta contra a perspectiva neoliberal , uma sociedade que garanta que o conjunto da população possa usufruir dos benefícios tecnológicos e do crescimento econômico e, ao mesmo tempo, esteja preocupada com o bem-estar das pessoas mais do que com o capital.

A ascensão do neoliberalismo É importante lembrar que, logo que surgiram, as ideias neoliberais não tiveram muita adesão social e política. Contudo, as transformações nos processos produtivos, chamada de “Terceira Revolução Industrial”, com a automação, robotização, novas tecnologias de comunicação e informação, com a globalização, criaram novas necessidades e formas de exploração para que o capital continuasse se multiplicando e acumulando. Foi nesse contexto, principalmente após a década de 1980, que as ideias neoliberais começaram a ganhar força.

PARTE 02 – História das políticas de saúde no Brasil

As políticas de saúde estão diretamente relacionadas à forma de compreender o papel do Estado, à concepção de desenvolvimento e a como compreendemos o ser humano e seus direitos. É por isso que, em linhas gerais, podemos identificar, na trajetória histórica brasileira do último século, o tensionamento das duas tendências de saúde mencionadas anteriormente (saúde como direito humano e saúde como mercadoria), as quais influenciaram diretamente no modelo de assistência adotado para efetivação das políticas públicas de saúde e proteção social.

Neste capítulo, reconstruiremos como as políticas de saúde foram implementadas no século XX no Brasil, e de que forma elas se relacionam com a compreensão de “Estado”, de “desenvolvimento” e de “ser humano”. Para isso, seguiremos duas opções didáticas: a primeira inicia a reflexão no início do século XX, pois até 1888 o Brasil era escravista e monarquista, formas de proteção social e de saúde não existiam; a segunda reconstrói a trajetória das duas concepções de saúde de forma separada, mesmo sabendo que, na prática, estiveram e estão em constante disputa. Num primeiro momento, reconstruiremos a perspectiva hegemônica durante o século XX até a constituição do SUS; posteriormente, resgataremos a perspectiva da saúde entendida como qualidade de vida e demonstraremos como ela se constitui nas raízes da proposta pelo SUS.

2.1 A trajetória da concepção de saúde hegemônica durante o século XX

A concepção hegemônica, isto é, aquela que comandou as políticas de saúde no Brasil durante o século XX pode ser simplificada em três tópicos: a) a política de saúde para garantir o comércio; b) a política de saúde para proteger a mão de obra; c) a saúde como negócio para ganhar dinheiro. Em que consistiu cada uma, veremos a seguir.

2.1.1 Política de saúde para garantir o comércio

A política de saúde para garantir o comércio centrou seus serviços e ações na política para combater as epidemias; no cuidado da saúde como responsabilidade unicamente individual; e na oferta da assistência da saúde aos pobres como caridade. Para entendermos melhor em que consistiu cada uma dessas medidas, iremos descrevê-las brevemente a seguir.

Política para combater as epidemias e garantir o comércio

A  abolição da escravatura (1888) , a Proclamação da República (1889) e o aumento de imigrantes europeus que vieram ao Brasil substituir a mão de obra escrava e cumprir a tarefa de “branqueamento” da população brasileira ampliaram o número de pessoas nas cidades. Grande número dessas pessoas empobrecidas (ex-escravos, principalmente) vivia em becos e ruelas nos centros de cidades, como o Rio de Janeiro, sem saneamento e sem mínimas condições de higiene.

Ao mesmo tempo, houve o crescimento da produção de café exportado, principalmente pelo Porto de Santos, o qual alimentava a riqueza dos barões do café ou dos coronéis. O crescimento do número de pessoas que trabalhavam em péssimas condições e moravam em casebres aglomerados próximos ao porto agravava os problemas higiênicos.

Ambas as condições – tanto o aumento da população quanto o aumento da exportação do café – elevaram a quantidade de epidemias, como febre amarela, tifo, cólera, peste bubônica. Essa situação levou a elite brasileira a pressionar o Estado para que intervisse na situação formulando políticas públicas objetivando combater tais doenças. A preocupação da elite não era cuidar de todos, mas para se proteger e salvar a exportação do café, uma vez que a grande quantidade de epidemias no Porto de Santos dificultava a exportação de café e a entrada de imigrantes, fundamentais para atender a necessidade de mão de obra para os barões cafeicultores.

Em outras palavras, quando os problemas de saúde atingem os filhos dos ricos, ou suas fontes de riquezas, o Estado não tem que medir esforços nem dinheiro para “garantir a saúde”; e isso não será considerado gasto ou desperdício, mas investimento.

Foi com essa concepção que o Estado investiu em pesquisas para entender como funcionavam doenças como a febre amarela; promoveu o desenvolvimento de vacinas e investiu em institutos de pesquisa, como Manguinhos . Além disso, ao compreender que a maioria das epidemias estava relacionada às questões de saneamento, passou a tratar a saúde como uma questão de polícia. Para melhorar as questões de saneamento, passou a expulsar os pobres que viviam nos becos e ruelas próximos aos centros da cidade e dos portos, sem lhes dar outra região salubre para que pudessem viver. Assim, a medida adotada não considerou a causa do problema, mas somente uma de suas consequências, pois os ambientes insalubres e proliferadores de doenças foram construídos devido ao contexto social injusto, desigual e concentrador de riqueza, e não porque os pobres são pessoas que nasceram assim e que por si só proliferam doenças. Logo, fortaleceu-se a compreensão de que higienizar a cidade é sinônimo de jogar os pobres e os moradores de rua para longe do centro ou para lugares específicos da cidade.

O cuidado à saúde como responsabilidade unicamente individual

É comum ouvirmos que garantir emprego, casa, comida, escola para os filhos e serviços de saúde é responsabilidade de cada um e que quem não consegue é preguiçoso ou não se esforça o suficiente, sendo julgado, muitas vezes, como incompetente e fracassado.

Sob uma perspectiva liberal, essa concepção entende que o mercado (empresas privadas e a lei da oferta e da procura) deve oferecer os serviços de saúde e cada indivíduo é responsável pelo pagamento dos custos. Nessa perspectiva, o Estado não se responsabiliza pela garantia do direito humano à saúde para todos, uma vez que sua interferência deve ser a mínima possível nas questões sociais.

Essa concepção, presente nas primeiras décadas do século XX, também é comum nos dias de hoje. Vamos lembrar duas situações concretas: quando se defende que quem pode pagar merece melhores serviços de saúde, não precisa enfrentar filas e deve ser bem atendido; e quando se defende a existência de planos privados de atenção à saúde.

Oferta da assistência à saúde aos pobres como caridade

A existência de muitas epidemias e a concepção de que o Estado não deveria garantir o direito à saúde fortaleceram, em grande medida, influenciadas pelo cristianismo, a ideia de que os pobres doentes deveriam ser atendidos por caridade. Por trás da ideia de caridade, também estava o medo de que as doenças infectocontagiosas atingissem os filhos dos ricos.

Lugares para cuidar dos doentes pobres, conhecidos como casas de caridade, na maioria das vezes administradas por congregações de irmãs religiosas, surgiram como consequência dessa concepção. Na época, ainda não existiam hospitais como conhecemos hoje, as famílias ricas contratavam seus próprios médicos e eram tratadas em suas casas.

Resquícios dessa compreensão existem até hoje, ao se entender que saúde não é um direito de todos os cidadãos e que os serviços gratuitos não precisam ser de qualidade, pois seriam uma espécie de caridade. Fundamentado nessa concepção, está o entendimento de que todos deveriam contratar um plano de saúde, mesmo que seja um “plano popular”.

A revolta da vacina A Revolta da Vacina (1904) foi uma das primeiras mobilizações urbanas no Brasil. Conhecida como “revolta da vacina”, a “revolta” da população era contra a postura autoritária e policiesca adotada pelo Diretor Geral de Saúde Oswaldo Cruz objetivando o saneamento da cidade, a expulsão das pessoas que moravam ruelas e a dos portos, garantindo a chegada da mão de obra livre (imigrantes europeus) para a expansão da indústria cafeeira. A vacinação contra a varíola tornou-se condição para conseguir emprego, casar, estudar. O povo, oprimido e cansado de tantas ações exploratórias, não aceitou mais ver suas casas violentamente invadidas e ter que tomar a vacina por imposição.
O SUS corre perigo Com a aprovação da EC-95 e a Nova Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017 (PT nº 2.436/2017 e PRC nº 02/2017), os princípios da universalidade (para todos), integralidade (tanto da rede de assistência quanto da compreensão do ser humano) e equidade (respeito às especificidades) estão fortemente ameaçados, seja pelo desfinanciamento do SUS, obrigando as pessoas a buscarem na rede privada de saúde a sua assistência, fortalecendo a coparticipação do privado na saúde pública; ou, então, pela nova lógica de atenção básica, pautada não mais na Estratégia da Saúde da Família mas na lógica do “postinho” de saúde, precarizando e limitando ainda mais as ações e os serviços ofertados na atenção básica.

2.1.2. Uma política de saúde para proteger a mão de obra

A compreensão da política de saúde está vinculada a diversos elementos da economia e da sociedade. Nesse sentido, o crescimento das indústrias e do número de operários criou a necessidade de proteger a saúde do trabalhador para que ele não faltasse ao trabalho, se sentisse protegido e não reivindicasse melhores salários para poder pagar por serviços de saúde. Vamos entender como ocorreu isso?

Até 1930, a economia brasileira dependia basicamente do café. O próprio governo garantia o preço dos produtos, permitindo que os barões/coronéis do café mantivessem seus altos lucros. Por outro lado, no período, a indústria também crescia. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as principais potências econômicas voltaram seus esforços para a guerra, diminuindo as exportações e obrigando o Brasil a produzir artefatos industrializados para consumir. O aumento das indústrias e do número de operários – muitos deles migraram do campo para as cidades em busca de trabalho nas indústrias que cresciam no Brasil –, junto com a influência das ideias anarquistas e marxistas – principalmente após a  Revolução Russa, provocaram grandes greves operárias no País (1917/1918), obrigando, inclusive, o governador de São Paulo a fugir da capital.

Esse contexto contribuiu para a constituição de uma política de saúde que acalmasse o movimento operário e, ao mesmo tempo, garantisse condições para o crescimento e a lucratividade das indústrias. Eram as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CPAs) e, mais tarde, os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs).

As Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs)

O deputado Eloy Chaves, que tinha ocupado o cargo de ministro da Justiça durantes as greves de 1918, propôs, em 1923, uma lei para criar as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs). Como justificativa para a lei, argumentava ser necessário garantir alguns direitos para os trabalhadores e evitar experiências como a Revolução Russa. As caixas criadas em cada empresa deveriam receber a contribuição dos operários, do empregador e do governo, constituindo um fundo para garantir que os operários, principalmente os mutilados por acidentes nas indústrias, pudessem receber uma pensão ou, depois de muitos anos de contribuição, pudessem se aposentar.

Dessa forma, foi iniciado um sistema de previdência e de assistência à saúde, que perdurou até 1988, quando foi substituído pelo SUS. As CAPs garantiam o direito à saúde e à previdência apenas para quem contribuísse ou estivesse empregado, ou seja, para quem tinha a carteira de contribuinte. Os demais eram atendidos como indigentes, sob a lógica da caridade.

Inicialmente, esses fundos (caixas) eram restritos às empresas maiores e dependiam muito da capacidade dos operários de reivindicar e garantir sua criação. Com o crescimento da indústria, principalmente após 1930, o volume de dinheiro desses fundos se ampliou.

Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs)

Com a crise econômica de 1929, gerada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque, o Brasil diminuiu a exportação de café, agravando ainda mais a situação econômica e política brasileira. No cenário político, o governo dos coronéis, que perdurava desde a Proclamação da República (1889), passou a ser disputado por outros setores da elite brasileira. Foi o que ocorreu em 1930, quando Getúlio Vargas assumiu a presidência, após breve movimento armado. Vargas implantou um regime centralizado para romper com o poder dos coronéis, desenvolvendo políticas de industrialização para minimizar o problema do café, buscando apoio político junto às camadas trabalhadoras, principalmente operárias.

Foi nesse contexto que Getúlio Vargas desenvolveu políticas populistas, que, em síntese, buscavam garantir alguns direitos para os trabalhadores e, ao mesmo tempo, controlar o movimento sindical e proporcionar um ambiente tranquilo para o crescimento das indústrias. Essas políticas, anunciadas como “presentes” concedidos pelo Estado de Vargas – pai dos pobres e mãe dos ricos, contribuíram para que o governo atendesse parte das reivindicações dos operários. Foi assim com as leis trabalhistas – carteira de trabalho, jornada de oito horas, férias e salário mínimo –, garantidas na Constituição de 1934 e depois reunidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Uma das medidas populistas de Getúlio Vargas foi a centralização das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs), transformando-as em Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs). Na prática, Vargas, ao perceber que o aumento das indústrias resultara em grande volume de recursos em muitas CAPs, reuniu as caixas das empresas de uma mesma categoria transformando-as em IAPs. O detalhe é que o Estado passou a administrar os recursos desses fundos. A princípio, a criação dos IAPs foi positiva para os trabalhadores, contudo, na prática, iniciou um problema que ainda hoje vivemos na Previdência: o governo, que administra os recursos, nem sempre garante que os empregadores paguem a sua parte e, para piorar, desvia os recursos para financiar obras de seu interesse. Depois, quando o trabalhador precisa do dinheiro, o governo não tem fundos para pagar sua aposentadoria. Vargas utilizou parte dos orçamentos do IAPs para financiar as indústrias siderúrgicas, como a de Volta Redonda e a Usiminas, garantir a expansão do setor e a lucratividade das empresas privadas.

Em 1966, a centralização dos recursos aumentou, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que centralizou todos os fundos dos IAPs e passou a administrar volume de dinheiro maior ainda. O orçamento do INPS também foi usado em fraudes e para alimentar a corrupção em obras faraônicas, como as da ponte Rio-Niterói, da Transamazônica e da Hidroelétrica de Itaipu. Depois de desviar o dinheiro dos trabalhadores por anos, o governo agora alega não ter orçamento para pagar pela atenção à saúde e a aposentadoria dos trabalhadores.

É importante lembrar que a Constituição de 1988, ao garantir o direito à saúde para todos, promoveu uma desvinculação do sistema previdenciário e de aposentadoria, da assistência social e da saúde. O Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), contudo, que deve garantir, dentre outras coisas, a aposentadoria, tem suas raízes na criação das CAPs, dos IAPs e, depois, do INPS.

Os IAPS tinham muitos recursos em caixa, a ponto de o Estado tê-los usado para financiar obras gigantescas de infraestrutura e na construção de estatais. O problema é que esses empréstimos nunca retornaram aos caixas. Assim, quando se fala em reforma da Previdência, quando se diz que a Previdência está falida, que ela não pode mais garantir o direito à aposentadoria dos trabalhadores, precisamos perguntar: onde foi parar o dinheiro da Previdência? O governo cobrou a dívida dos empregadores? Ele devolveu o dinheiro que retirou dos fundos de aposentadoria para subsidiar as obras faraônicas? O discurso de que a Previdência é deficitáriadesconsidera essas questões e, ainda, tenta enfraquecer as políticas de proteção social.

Consolidação das Leis do Trabalho A CLT , importante conquista do povo brasileiro, é fruto da organização da classe trabalhadora e de sua incansável luta. Soma-se a isso a disputa de modelo de sociedade adotado no Brasil, de um lado, pelo fortalecimento de um Estado Nacional (construção de grandes estatais, como a Petrobras, a Usiminas e a Eletrobrás) e, de outro, pelo modelo de sociedade capitalista, concebendo o Estado como “Mínimo”. Essa disputa levou ao suicídio de Vargas e ao golpe de 1964. Semelhante disputa enfrentamos atualmente no Brasil: modelos de sociedade são tensionados e, com o enfraquecimento da concepção de Estado Democrático de Direito, fortalece-se a compreensão de Estado Mínimo. Há, com isso, o desmonte das leis trabalhistas e da proteção social, jogando-as para a esfera do mercado, como a aprovação, em 2017, da Lei 13.467, mais conhecida como a Reforma Trabalhista. Essa reforma, fruto das medidas austeras que o Brasil vem adotando desde 2016 e sob a égide do discurso de “gerar mais empregos”, alterou significativamente uma série de artigos da CLT, ferindo diretamente os direitos trabalhistas da classe trabalhadora. Essa reforma é conhecida, também, como a “morte da CLT”.
Reforma da Previdência no Brasil A Previdência Social no Brasil integra a Seguridade Social. Segundo a Constituição de 1988, a Previdência Social, a Saúde e a Assistência Social compõem, juntas, a Seguridade Social. A Seguridade Social é de responsabilidade do governo e de todos os cidadãos, e suas fontes de financiamento são três: 1) contribuição dos trabalhadores formais, autônomos, produtores rurais; 2) contribuição das empresas sobre a folha de pagamento, lucro, faturamento; 3) do governo, através das receitas provenientes da importação de mercadorias, receitas das loterias e outras. Logo, a Previdência não é financiada somente pela “folha de pagamento”, mas por todas as receitas que integram a Seguridade Social. Isso é importante saber, porque, há muitos anos, governos falam da necessidade da reforma da Previdência, pois seria deficitária. Neste ano de 2019, foi aprovada a nova reforma da Previdência no Brasil; no rol de outras medidas austeras adotadas no Brasil desde 2016, ela fere gravemente o direito conquistado através de muita luta. Segundo o governo, se não cortar os gastos, não será possível pagar os benefícios no futuro; no entanto, isso é falso, pois, como mostram os relatórios da ANFIP, a Previdência não é deficitária, mas superavitária. O problema está nos vários desvios e empréstimos (Transamazônica, Itaipu, construção de Brasília) que nunca retornaram aos caixas da Previdência; dívida de grandes empresas; e uso, por parte do governo, em outras funções dos recursos que seriam exclusivos da Previdência. Para saber mais, acesse: Desmistificando o Déficit da Previdência (PDF) Desmistificando o déficit da Previdência (Vídeo – YouTube)

2.1.3. Saúde como um bom negócio para ganhar dinheiro

Os IAPs passaram a concentrar grandes volumes de recursos, desviados para a construção de obras de interesse do governo e também para comprar serviços de saúde. Ao mesmo tempo, principalmente após 1950, os serviços para o tratamento das doenças começaram a ser vistos como um ramo de negócios que poderia ser explorado, gerando grande lucratividade.

A Saúde, nesse período, passou a ser vista como uma política para financiar a iniciativa privada. Os serviços para tratamento das doenças surgiram, no Brasil, como negócios, na década de 1950; contudo, foi no período da ditadura civil-militar que cresceram e se desenvolveram. A transformação dos IAPs em INPS permitiu que o governo tivesse grande quantidade de recursos, principalmente na primeira metade da década de 1970, período no qual a economia cresceu – durante o milagre econômico brasileiro, gerou empregos e aumentou o número de contribuintes.

Os governos militares utilizaram esses recursos para financiar obras faraônicas e para comprar serviços de atendimento às doenças da iniciativa privada. O próprio governo financiava a construção e os equipamentos de hospitais privados para depois garantir o lucro, comprando e pagando os serviços de atenção à doença. Dessa forma, os serviços de promoção e prevenção foram abandonados, e todos os recursos financeiros, canalizados para a “indústria da doença”.

As empresas privadas de prestação de serviços para o tratamento da doença se expandiram e se fortaleceram economicamente com recursos públicos, resultado dessa política de centralização das atividades no tratamento das doenças, ampliando a quantidade de hospitais, de consultas e de exames. Em contrapartida, aumentou o número de doenças como cólera, febre amarela, peste bubônica e verminoses, em função da falta de investimentos em saneamento, em promoção e prevenção da saúde.

Por isso, o INPS/INAMPS começou a não ter dinheiro para pagar pelos serviços privados de tratamento das doenças, fruto dos desvios dos recursos e da crise do desemprego. Os hospitais construídos com recursos dos trabalhadores deixaram de atender o INPS/INAMPS, passando a contemplar serviços privados com pagamento individual ou por meio de planos privados.

O veneno está na mesa Além do campo assistencial da saúde, outras áreas incorporaram a mesma lógica. A Revolução Verde, no campo da agricultura, por exemplo, criou meios e estratégias de cultura de alimentos e estimulou o uso de agrotóxicos em grande escala. Provocou mudanças no modo de produção da agricultura e trouxe consequências, ainda sendo investigadas, no campo da saúde. O filme O veneno está na mesaquestiona os benefícios e riscos da Revolução Verde.

2.2 As raízes e a trajetória política da proposta de saúde defendida pelo Sistema Único de Saúde

O Sistema Único de Saúde é fruto de uma luta social pela redemocratização do Estado brasileiro, de uma concepção de sociedade que efetive, por meio de políticas de desenvolvimento (emprego, renda, moradia e saneamento), de seguridade social e de saúde, o direito de todos os cidadãos terem boa qualidade de vida. Essa compreensão atribui ao Estado um papel fundamental na constituição, no financiamento e na efetivação de políticas públicas em geral e, especificamente, de seguridade e saúde.

A proposta sobre saúde sistematizada pela Constituição de 1988 e nas Leis 8080/90 e 8142/90 possui raízes numa trajetória de políticas públicas, mesmo que contra-hegemônicas, no decorrer do século XX. Vamos resgatar alguns elementos.

2.2.1. O modelo campanhista de saúde pública

A partir do início do século XX, fruto do aumento da urbanização e do desenvolvimento da economia cafeeira exportadora, a ampliação da mão de obra imigrante ampliou a preocupação sobre o combate das epidemias. Nesse período, as políticas foram autoritárias, como o processo de saneamento (higienização) da cidade do Rio de Janeiro, então capital do País, e do Porto de Santos, ou mesmo a forma autoritária de obrigar as pessoas a se vacinarem. Apesar das arbitrariedades e da vinculação aos interesses econômicos, construiu-se uma compreensão da importância de atenção coletiva à saúde, do desenvolvimento de pesquisas e de organização de um sistema de saúde pública.

A organização de campanhas de saúde pública para combater as epidemias ganhou força no final da década de 1930 por meio dos Serviços Especializados de Saúde (SESP). Esses serviços foram estimulados, em grande medida, durante a segunda Guerra Mundial (1939-1945), para combater a malária na região amazônica e permitir maior extração da borracha necessária para o esforço da guerra. Apesar desse objetivo específico, contudo, o SESP tinha uma preocupação social e atingiu setores sociais, longínquos, então desconhecidos pelo Estado brasileiro.

Apesar do caráter limitado da lógica campanhista, é relevante reconhecer sua importância na preocupação com a saúde pública, com a atenção coletiva em atividades de promoção e prevenção, desempenhando um papel e atuando numa lógica distinta dos CAPs e do IAPs, que agiam exclusivamente na atenção à saúde individual e para quem contribuía com o sistema (tinha carteirinha).

2.2.2. Os centros de saúde: uma proposta de atenção diferente

No início da década de 1920, o médico Geraldo Paulo Souza propôs que a saúde pública fosse organizada a partir de Centros de Saúde. Os Centros de Saúde defendiam que as políticas de saúde deveriam estar em consonância com ações sociais, educativas e com atenção central à família, substituindo a lógica policialesca, higienizadora e a atenção individual proposta pelas CAPs.

Os Centros de Saúde, com sua lógica educativa, persistiram até a década de 1940. Contudo, na década de 1950, o fortalecimento da medicina de grupo, o crescimento da lógica farmoquímica, de medicamentos e a capacidade de contratação de serviços individualizados para tratamento de doenças pelos Instituto de Aposentadoria e Pensão (IAPs) fizeram crescer a perspectiva hospitalocêntrica e das especializações que multiplicaram a quantidade de serviços a serem vendidos.

A lógica dos Centros de Saúde foi, em grande medida, um contraponto à perspectiva da atenção individualizada financiada individualmente ou através das CAPs e dos IAPs e à perspectiva da “medicina de grupo”, com serviços especializados, vinculados à lógica farmoquímica e hospitalocêntrica.

2.2.3. Movimento da Reforma Sanitária: a construção de um novo modelo de saúde

A década de 1970 foi marcada por aspectos contraditórios:

  1. grande crescimento econômico, o milagre brasileiro, estimulado pelo financiamento multinacional, pelo endividamento do País e pela “Revolução Verde”. A mecanização do campo e a utilização de um pacote químico de fertilizantes, herbicidas e inseticidas resultaram numa maior concentração de terras e grande expulsão de famílias de agricultores para as cidades. Contraditoriamente, o crescimento desordenado das cidades, a falta de saneamento, o arrocho salarial, a falta de políticas de saúde e educação criavam um alto grau de insatisfação da população com os governos militares que nem a censura conseguia esconder;
  2. foi o período de maior atrocidade do regime militar: censura da imprensa, prisões, torturas, exílios e desaparecimentos forçados de opositores. O slogan era “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Muitos políticos, líderes sociais e intelectuais foram torturados, mortos ou tiveram que deixar o País. Contraditoriamente, foi nesse período que surgiram e se fortaleceram movimentos sociais de resistência ao regime militar e ao que ele representava. Alguns setores optaram pela resistência armada, a guerrilha; outros iniciaram a organização de base, através da igreja – Comunidades Eclesiais de Base (CEBS) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI), de organizações sindicais e de movimentos urbanos.

Nesse contexto contraditório e de luta por um novo modelo de sociedade e de Estado, surgiu o Movimento da Reforma Sanitária, o qual defendia, em conjunto com as transformações sociais e políticas, que a saúde é “um direito de todos e um dever do Estado”, portanto sua atenção deveria ser integral e a gestão dos serviços deveria ser democrática, com controle social da comunidade. Esse movimento congregou profissionais de saúde, professores universitários, líderes sindicais e o movimento comunitário, unificando diferentes setores e organizações, que passaram, numa soma de esforços, a aprimorar a formulação acadêmica e a  luta pela conquista de direitos.

A luta pela construção do direito à saúde foi longa e árdua. Destacamos, aqui, a importância da VIII Conferência Nacional de Saúde, de 1986; foi a primeira conferência com participação social, com representação de diferentes movimentos. Ela foi precedida de muita mobilização social e possibilitou que seus participantes estivessem unificados em torno da proposta de garantia ao direito à saúde. Outro momento marcante foi durante a Assembleia Constituinte, na qual houve muitos embates, mobilizações e articulações para que, mesmo com maioria conservadora dos constituintes, fosse possível aprovar a “saúde como direito de todos e dever do Estado” (Art. 196 da CF/1988).

O SUS ganhou base legal em 1988. Desde então, disputa com a tendência mercantil de saúde e, por consequência, com o modelo de sociedade que a sustenta sua compreensão de saúde e seu modelo de Estado. Com isso, é importante perceber que a conquista da base legal foi apenas um passo da luta e que ela continua cotidianamente, conquistando, por meio de luta e mobilização da sociedade, o direito humano à saúde.

2.3. Sistema Único de Saúde (SUS)

2.3.1. Os princípios do SUS

Fazer a memória da construção e conquista do SUS é importante e necessário, pois mostra como ele se edificou por meio de um processo de construção a partir das bases populares, resultado da organização e da luta política social. Nesse sentido, a estruturação conceitual do SUS foi elaborada a partir dos anseios da comunidade, em conjunto com a sociedade, tomando por base experiências exitosas de outros países, e não entre quatro paredes, a partir de análises e conclusões de alguns técnicos.

Quando construímos uma casa, primeiro levantamos as bases para que a construção se mantenha firme e não caia; com o SUS, ocorreu a mesma coisa: era necessário definir suas bases. Quando, na edificação de uma residência, alteramos um dos alicerces, a construção também fica comprometida; o mesmo ocorrerá com o SUS: os princípios, a base do SUS são a universalidade, a equidade e a integralidade. Esses são os fundamentos da política de saúde no Brasil, e a ausência deles, ou o esquecimento de um deles, fará com que o SUS perca sua essência: a capacidade de garantir o direito à saúde a todos. Entre os princípios, está o esforço de construir um sistema de saúde regido pelos mesmos fundamentos em todo o Brasil. Diferentemente de todas as políticas de saúde implementadas anteriormente no País, o SUS não é um serviço, uma instituição ou um conjunto de “mini-SUS”, mas um conjunto de unidades, serviços e ações que interagem para um fim comum (ABC do SUS, 1990). Sendo um sistema que se organiza em todo o território nacional, sob a mesma filosofia, de quem é a responsabilidade pela sua implantação? É das três esferas de governo: União, estados e municípios. Para tratar dos diferentes princípios do SUS, vamos dividi-los: primeiro, os princípios que estão na base da sua construção; em seguida, os princípios ou diretrizes que devem orientar sua organização em todo o País.

Universalidade

Conforme o Art. 196 da Constituição, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Embora possamos dizer que essa frase expressa o óbvio, é importante repeti-la, porque muitas vezes o óbvio não é garantido.

Duas são as implicações desse artigo constitucional:

  1. A saúde é direito de todos. Se, antes da Constituição de 1988, era preciso contribuir para a Previdência Social para ter acesso à saúde pública, agora todo cidadão deve tê-lo pelo simples fato de ser humano, não importando sexo, idade, crença religiosa, partido político ou contribuição previdenciária. A lógica do conceito de “saúde” do Estado de Bem-Estar Social teorizado por Beveridge, que entendia a saúde como direito da cidadania, está presente no SUS. Entendida como direito, a saúde deve ser gratuita. Desrespeita a lei e, portanto, deve ser responsabilizado o prestador de serviço público ou privado, contratado pelo SUS, que cobra qualquer quantia dos usuários. A Lei 12.653, de 28 de maio de 2012, considera crime exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial. O responsável pelo estabelecimento de saúde que descumprir a lei poderá ser punido com três meses a um ano de reclusão. Entretanto, a gratuidade não é um favor prestado pelo poder público. É, antes de tudo, parte da dignidade humana, portanto, ninguém dá um direito ao outro, mas constrói e conquista historicamente esse direito. Deve-se considerar, ainda, que todos os cidadãos contribuem com impostos ou taxas, mesmo que não tenham contrato formal de trabalho. Por exemplo, ao se adquirir qualquer produto para consumir, nele já está incluído um imposto; por isso, é mais do que justo termos serviços públicos de qualidade, como os serviços de saúde. Se pagarmos por esses serviços nos postos de saúde, hospitais, clínicas ou adquirirmos um plano de saúde, estaremos pagando duas vezes pela saúde;
  2. A saúde é dever do Estado (municípios, estados e União). Quando reconhecemos a saúde como direito fundamental, alguém deve ter a responsabilidade de construir as condições concretas para sua efetivação. Embora a sociedade em geral tenha um papel na implementação do SUS, a responsabilidade primeira ou máxima é do Estado. Nesse sentido, a saúde não é favor prestado pelo vereador, prefeito, governador ou presidente da República.

Integralidade

O SUS parte de uma concepção de “ser humano” presente em toda sua estruturação. Compreende-o como “um ser integral, biopsicossocial, e deverá ser entendido com essa visão integral por um sistema de saúde integral, voltado a promover, proteger e recuperar sua saúde” (ABC do SUS, 1990). Nesse sentido, o princípio da integralidade do SUS é entendido de duas formas:

  1. integralidade vertical, integralidade do ser humano. O ser humano é entendido como um todo, não fragmentado, integrado à comunidade e vivendo num contexto específico. Quando as ações em saúde não levam em conta todos os aspectos envolvidos na vida do ser humano – biológicos, psíquicos e sociais –, fragmentam-no e atuam sobre uma parte. Mesmo que não de forma explícita, esse modo fragmentado de entendimento do ser humano faz parte da indústria da doença defendido pela tendência mercantil de saúde;
  2. integralidade horizontal, integralidade do sistema. Sendo o ser humano um todo, ele precisa ser atendido por um sistema de saúde que dê conta desse todo. Isso quer dizer que temos direito às diversas ações em saúde: promoção, prevenção, recuperação, assistência, reabilitação e alívio, que precisam estar articuladas. Conforme o art. 198 da Constituição, temos direito ao “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. Isso significa que o importante é promover e prevenir as doenças para que o ser humano viva bem. Em certos momentos, a promoção e a prevenção não são suficientes, pois somos atingidos por moléstias. Nesse caso, temos direito aos serviços assistenciais, tanto de tratamento como de reabilitação. Se não estão disponíveis num determinado município, deve-se encaminhar a pessoa a outro município que possa fazer o atendimento.

De forma sintética, é possível dizer que a integralidade compreende o ser humano e o SUS como um todo. Compreender o ser humano como um todo é não reduzi-lo a partes – como perna, braço ou cabeça –, compreender o sistema de forma integral é entender as ações em saúde em todos os níveis, da baixa à alta complexidade.

Equidade

O princípio da equidade no SUS busca oferecer ações em saúde conforme a peculiaridade e a necessidade das pessoas. Nascemos com traços biológicos particulares e nos construímos como seres humanos dentro de realidades geográficas, culturais e sociais diversas. O SUS prevê que esses aspectos sejam levados em conta na sua implementação. Isso significa que, ao mesmo tempo que igualamos as pessoas no âmbito do direito – pelo princípio da universalidade, todos têm direito ao SUS –, precisamos diferenciá-las do ponto de vista de suas necessidades específicas, garantindo ações em saúde conforme essas necessidades. Por exemplo, embora o princípio da universalidade preveja que todos tenham direito a um transplante de coração, não significa que o SUS precise estar preparado para transplantar 207,6 milhões de corações, o número estimado da população brasileira em junho de 2017 (segundo o IBGE). Isso seria praticamente insustentável do ponto de vista financeiro, e nem todas as pessoas precisam de um transplante de coração.

Os problemas de saúde se diferenciam de uma pessoa para outra – citamos um exemplo de assistência, mas isso também se traduz nas áreas da promoção e da prevenção. O sistema precisa estar preparado para garantir diferentes serviços para todas as pessoas. O princípio de equidade também se refere à garantia do acesso a todos, independentemente de sua localização geográfica, como as comunidades ribeirinhas e extrativistas, os quilombolas, as comunidades do campo e as da floresta.

2.3.2. Diretrizes organizativas do SUS

A organização do SUS deve ter como base todos os seus princípios. Quando um gestor de saúde não segue essa doutrina, não está implementando a lei da saúde e está desrespeitando a cidadania. Para que o SUS seja, de fato, um sistema de saúde de qualidade, que garanta saúde para todos, deve ser organizado à luz dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Esses princípios devem se traduzir na forma organizacional do sistema, regida pelo que podemos chamar de “diretrizes organizativas do SUS”. Diferentemente das outras políticas de saúde implantadas antes de 1988, essas diretrizes vão garantir um sistema único: regionalização, hierarquização, descentralização, racionalização e resolução, complementaridade do setor privado e participação da comunidade.

Regionalização

Segundo a Constituição, “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada” (art. 198). Essa ideia remonta à Conferência de Alma-Ata, que afirmava a importância de organizar a assistência à saúde perto da casa das pessoas, para garantir o acesso a toda a população, de forma universal, equânime, integral e gratuita. A regionalização é a forma de organização e funcionamento do SUS prevista no Decreto 7.508/2011, que regulamenta a Lei Orgânica da Saúde. Para o decreto, ações e serviços de saúde devem ser organizados de forma integrada entre municípios vizinhos, que se identificam cultural e geograficamente, por meio de uma rede de atenção à saúde. Isso quer dizer que consultas, exames e procedimentos devem ser organizados em uma rede de saúde, de forma hierarquizada: começando pela atenção básica e, se necessário, encaminhando para os hospitais, laboratórios e institutos especializados no município ou na região, de forma organizada e a partir de contratualizações entre ambos. Em síntese, ações e serviços em saúde devem estar organizados a partir de regiões, delimitadas do âmbito municipal ao federal, passando pelo estadual, numa rede que garanta ao cidadão fácil acesso a serviços qualificados. Quanto mais perto da população os serviços e as ações forem executados, maior a capacidade de agir sobre as causas dos problemas de saúde de determinada região. É necessário, entretanto, que o gestor municipal converse com os gestores dos municípios vizinhos e com o Estado para gerir a saúde a partir da região.

Hierarquização

A regionalização prevê acesso fácil e de qualidade ao sistema de saúde. Isso não significa que todos os municípios ofereçam todas as ações e os serviços em saúde, o que seria irracional e insustentável. Por isso, o SUS prevê que as ações de saúde estejam articuladas entre si de forma hierarquizada, da atenção básica à alta complexidade. A lei prevê que as ações e os serviços públicos de saúde, além de regionalizados, “integrem uma rede hierarquizada […], constituindo, assim, um sistema único” (art. 198). Ou seja, os problemas de mais fácil solução devem ser resolvidos perto da população – atenção primária –, porque não exigem procedimentos mais especializados e, portanto, são menos onerosos financeiramente, o que não quer dizer que sejam menos importantes. Os problemas que exigem procedimentos mais complexos, de média e alta complexidade, seriam tratados em hospitais e centros especializados integrantes das redes de saúde. Entretanto, quando o cidadão ingressar em qualquer unidade de saúde do sistema e essa unidade não tiver condições de resolver o problema, tem a responsabilidade de encaminhá-lo imediatamente a outra, mais especializada, que possa fazê-lo. Em síntese, a hierarquização refere-se à organização e à gestão administrativa dos serviços prestados pelo SUS, que devem ser organizados em níveis crescentes de complexidade. O decreto 7.508/2011 prevê como portas de entrada a atenção básica, a atenção de urgência e emergência, e a atenção psicossocial. Ou seja, o acesso ao SUS é feito por essas portas e não por “favores” de conhecidos furando a fila. Todo e qualquer procedimento no SUS deve ser iniciado pelas portas de entrada, passando, a partir daí, se necessário, para os demais níveis de complexidade.

Descentralização

A descentralização é o meio de resolver um problema sério do setor da saúde. Até a implementação do SUS, havia uma concentração dos recursos e centralização do poder de decisão no Ministério da Saúde, em Brasília. A capacidade gerencial das políticas e dos recursos por parte do ministério era muito limitada, porque o Brasil é geograficamente muito grande. Essa centralização desperdiçava recursos em determinados locais, fazendo faltar em outros, o que gerava dificuldade de responsabilização dos diferentes níveis de governo. A descentralização se fundamenta na teoria de que, “quanto mais perto do fato a decisão for tomada, mais chance haverá de acerto” (ABC do SUS, 1990). A garantia constitucional está no art. 198: “descentralização, com direção única em cada esfera de governo”. Com isso, os estados, mas principalmente os municípios, ganham poder para organizar a saúde de acordo com a sua realidade específica – é a municipalização da saúde, que dá poder de decisão a quem executa. Conforme a Constituição Federal, aos estados e à União cabe a responsabilidade de cooperarem técnica e financeiramente (art. 30, inciso VII). É importante ressaltar que, depois da aprovação do SUS, muito do que se fez com o argumento da descentralização foi uma municipalização da saúde. O município teve que assumir um compromisso cada vez maior nas ações e serviços, mas dependendo dos recursos do governo federal, com quem fica a maior parte dos impostos dos cidadãos. Isso acaba desvirtuando o real sentido do que o movimento sanitarista queria com a descentralização.

Racionalização e resolução

Ações e serviços devem ser definidos e organizados de modo a solucionar os problemas de sua região de saúde. Para fazer o planejamento, é importante verificar os indicadores epidemiológicos. O princípio da racionalidade prevê que não haja oferta de procedimentos desnecessários e, portanto, desperdício de recursos. A construção e a aquisição de estruturas, como hospitais, aparelhos e remédios, e também a oferta de serviços não devem ser definidas por este ou aquele grupo, amigo do vereador ou do prefeito, que somente está interessado em ganhar dinheiro, mas pela demanda real da população. Por isso, o sistema deve ser resolutivo, isto é, procurar resolver o problema do cidadão, empregando o tempo, o custo e o sofrimento mínimos. O cidadão que precisa de atendimento não pode ser mandado de porta em porta; ao entrar em qualquer porta do sistema, a unidade deverá buscar a solução ou encaminhar o cidadão para outra com capacidade resolutiva, sem exigir procedimentos desnecessários para cobrar mais serviços do SUS.

Complementaridade do setor privado

O SUS prevê que ações e serviços sejam garantidos a partir da estrutura do setor público. Quando essa estrutura for insuficiente, o gestor poderá recorrer ao setor privado, que atuará de forma complementar ao sistema. A forma de participação será acordada com o gestor público por meio de contrato ou convênio. Nessa participação privada, terá preferência o setor filantrópico – não lucrativo – do SUS. A prestação de serviços pelo setor privado não tira o caráter público do SUS. O cidadão, quando for atendido em estruturas privadas, da mesma forma como nas públicas, estará garantindo a efetivação de seu direito à saúde. Por isso, quem deverá definir as regras para essa contratação de serviço privado é o SUS. Essa prerrogativa está na Lei 8.080/90, art. 22: “na prestação de serviços privados de assistência à saúde, serão observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do SUS quanto às condições para seu funcionamento”. No contrato ou convênio, terá sempre primazia o fim público – direito à saúde do cidadão –, e não o fim privado – lucro. O prestador privado deverá estar de acordo com os princípios e as normas técnicas do SUS. Precisa, ainda, se integrar ao processo de regionalização e de hierarquização dos serviços de saúde da região à qual pertence.

Participação da comunidade

Se o princípio da descentralização parte da máxima de que, “quanto mais perto do fato for tomada a decisão, maior a chance de acerto”, o princípio do controle social parte da máxima de que, “quanto maior o envolvimento da sociedade na construção e fiscalização do SUS, mais chances de êxito existirão”. Todos os sujeitos envolvidos no SUS têm papel na sua implementação: profissionais, prestadores, gestores e, principalmente, usuários que estão na ponta do sistema e que acompanham o cotidiano da política pública. Antes da aprovação do SUS, principalmente na época da ditadura, um dos problemas estruturais da política de saúde no Brasil era o distanciamento da sociedade, que não influenciava nas definições, nem acompanhava a implantação dessas políticas. Embora experiências embrionárias tenham sido feitas com a Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde (CIMS), em 1983, e, mais tarde, com a aprovação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), em 1987, a efetivação constitucional da participação social ocorreu somente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal.

O texto constitucional contempla, em seu artigo 198, “a participação da comunidade”. Mais tarde, a lei 8.142/90 traduziu o texto constitucional em duas formas de participação: os Conselhos de Saúde e as Conferências de Saúde, nas três esferas de governo – União, estados e municípios. A conquista do controle social na saúde e em outras políticas públicas contempla o anseio histórico da sociedade de radicalizar cada vez mais a democracia, na qual o poder emana do povo. Nesse sentido, os conselhos de saúde não possuem caráter meramente consultivo, mas também deliberativo. Eles têm poder de decisão sobre a política da saúde. O exercício do controle social se baseia na democratização do conhecimento e estimula a organização da sociedade para o efetivo exercício da democracia direta na gestão do SUS. É a garantia constitucional de que a população, por meio de suas entidades representativas, participará do processo de formulação das políticas de saúde e do controle social de sua execução, em todos os níveis, do federal ao local. Dada a importância do controle social na construção do SUS, ele será fundamental também na sua implementação e consolidação. O controle social não é apenas “mais um princípio” do SUS, e sim o “princípio por excelência” para o movimento popular, e dele depende a saúde do sistema. É fundamental refletirmos sobre o papel que o controle social exerce no SUS e quais os grandes desafios que são colocados para o movimento popular nos próximos anos.

Universalidade não é “todos”? Você sabia que há uma tendência mundial que diz que universalidade não é “todos”, mas “alguns”? Esse é um debate reafirmado pelo FMI e Banco Mundial, que dizem não ser possível um Sistema Universal de Saúde Pública no qual todos tenham direito à saúde, mas que apenas quem se encontra em vulnerabilidade social maior é que deveria ser incluído. O problema é que essa concepção reforça o argumento de que a responsabilidade pela saúde é do indivíduo e que cabe ao Estado “ajudá-lo”; é quase como entendermos a saúde como uma caridade do Estado e não um direito. A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem se posicionando de forma contrária a esta perspectiva: para ela, “o gozo do grau máximo de saúde que se pode alcançar é um dos direitos fundamentais de todo ser humano sem distinção de raça, religião, ideologia política ou condição econômica ou social”. Para isto, foi pactuada com os países-membros a estratégia de Saúde Universal, segundo a qual “este direito deve ser promovido e protegido pelos países sem distinção de idade, etnia, sexo, gênero, orientação sexual, idioma, nacionalidade, local de nascimento ou de qualquer outra condição” (OPAS, 2019). Portanto, a saúde é direito de todos e dever do Estado, pois, no conceito de “saúde” estão implicadas condições sociais, culturais e econômicas. Quando a saúde é vista pela ótica do mercado e não pelo cuidado do humano, a regulação passa a se dar pelas leis do mercado, e não pela prioridade à vida. Mas este não é um debate distante, que acontece apenas no âmbito internacional; ele influencia o dia a dia de cada um de nós! Lute pelo SUS, por um sistema universal de Saúde em que todos tenham direito à saúde como direito humano. A OPAS publicou em 2019, o Informe da Comissão de Alto Nível refletindo sobre Saúde Universal no século XXI: 40 anos de Alma-Ata.

2.4. E o financiamento do SUS?

O SUS, como vimos até agora, é um Sistema Universal Público de Saúde. Isto quer dizer que não é apenas uma consulta ou uma lista de alguns serviços prestados; ele cuida das pessoas integralmente, todo dia, mesmo daquelas pessoas que não vão a uma Unidade Básica de Saúde ou Hospital.

E, para que esse sistema se constitua em sistema universal de saúde pública de qualidade, há que dispor de recursos financeiros suficientes, ou seja, o SUS precisa de financiamento público para de fato cuidar de todas as pessoas com qualidade e resolutividade.

Segundo a Constituição Federal de 1988, o “Sistema Único de Saúde será financiado […] com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. Mas de quanto deverá ser este financiamento? Segundo a Lei 8080/90, em seu art. 31, “o orçamento da seguridade social destinará ao Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades.” A experiência histórica do SUS nos mostra que a lógica do financiamento foi inversa, levando a um subfinanciamento da saúde. Em vez de construir os orçamentos da Saúde orientado pela pergunta “De quanto precisamos?”, os orçamentos foram construídos a partir do “De quanto queremos dispor?” O descompasso entre a necessidade e a disponibilidade foi grande, pois o disponível, que está estritamente relacionado com o Projeto de Nação e com vontade política, sempre esteve muito longe do necessário. Em 2011, depois de grande mobilização nacional pela aprovação da EC-29, teve-se a aprovação da Lei 141/2011, que estabelece os mínimos que cada ente federado deve investir na Saúde; define o que é e o que não é gasto em saúde para o orçamento; e, também, estabelece que o repasse dos recursos seja feito via fundo a fundo, obrigando os munícipios, estados e a União a criarem o “Fundo de Saúde”, criando uma conta exclusiva dos recursos advindos para a Saúde, que pode ser melhor fiscalizada pelos conselheiros de saúde.

O repasse para a Saúde, conforme a Portaria 204 do MS de 2007 (Pacto pela Saúde) era realizado pelos chamados blocos de financiamento, que buscava fortalecer o SUS, ampliando o financiamento para a Atenção Básica através do programa Saúde da Família. A portaria previa 6 grandes blocos: Bloco de Atenção Básica, Bloco da Média e Alta complexidade, Bloco da Vigilância em Saúde, Bloco da Assistência Farmacêutica, Bloco de Gestão e Bloco de Investimento.

Qual o valor cada ente federado deve investir na saúde? De acordo com a Lei 141/11, o governo federal deverá aplicar anualmente em ações e serviços públicos de saúde o valor empenhado no ano anterior acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB); o governo estadual, no mínimo, 12% da sua receita líquida; e os municípios e o Distrito Federal, no mínimo, 15% das suas receitas líquidas.

O percentual investido pelo governo federal foi duramente criticado e houve todo um movimento do CNS, de movimentos sociais populares e entidades nacionais para que a União aplicasse 10% da sua receita líquida.

Esse cenário só piorou com a adoção do regime de austeridade imposto no país em 2016, quando foi aprovada a EC-95 que criou um novo regime fiscal (MASSUDA; LELES, 2018). Esse regime fiscal fere gravemente o SUS, pois provoca um desfinanciamento da saúde. A partir de 2018, a nova regra de cálculo para o valor da União a ser aplicado na saúde desvincula o piso da variação nominal do PIB (conforme previa a Lei 141/11) e da Receita Corrente Líquida (RCL, EC 86/2015). De 2018 em diante, o valor mínimo a ser aplicado pela União na saúde será equivalente ao piso do ano anterior corrigido apenas pela inflação, impossibilitando qualquer aumento real; ao contrário, podendo provocar uma diminuição nos valores investidos ao longo dos 20 anos. Alguns impactos da EC-95 já podem ser percebidos, mesmo que o impacto maior vá ser no decorrer dos próximos anos, tais como: o aumento dos restos a pagar de 2017 para 2018, de 2018 para 2019 e, também, segundo o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) aprovado no fim de 2018, o orçamento da saúde terá uma perda de 9,5 bilhões em 2019 comparativamente à aplicação do orçamento pela regra anterior da EC-95.

Piorou ainda mais em função de duas medidas tomadas nos anos de 2017 e 2019. Em 2017, o Governo Federal aprovou a Nova Política Nacional de Atenção Básica – PNAB e alterou o repasse dos recursos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde (PT nº 2.436/2017; PRC nº 06/2017). A Nova PNAB de 2017 definiu apenas dois blocos para repasse dos recursos via fundo a fundo: custeio e investimento, e não mais seis blocos como previsto anteriormente. Por conta disso, o Conselho Nacional de Saúde se posicionou fortemente contrário à sua aprovação, entendendo que tal Portaria feria gravemente os princípios do SUS e fortalecia o modelo curativo de saúde, uma vez que rompe com a compreensão de Atenção Básica como ordenadora da rede e coordenadora do cuidado e fortalece o modelo de pronto-atendimento, que pouco dialoga com as noções de “território”, “equipes multidisciplinares” e com as ações de promoção e prevenção da saúde.

Em 2019, no dia 12 de novembro de 2019, foi publicada a Portaria nº 2.979, que pode representar mudanças estruturais no SUS e comprometer o princípio da universalidade. Esta Portaria “institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da alteração da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017.” Ela acaba com o Piso da Atenção Básica – PAB fixo e cria uma nova forma de financiamento da Atenção Básica por 4 dimensões de financiamento: capitação ponderada; desempenho; programas (incentivos); e provimento.

O Conselho Nacional de Saúde publicou uma nota na qual desaprova a publicação de Portaria da Atenção Primária., Primeiro, por não incluir/discutir com o controle social, como dispõe a Constituição Federal, a Lei 8080/90, a Lei 8142/90 e a Lei Complementar 141/2012. Segundo, porque, reconhece que tal Portaria fere o princípio da universalidade do SUS.

Também em nota, entidades como ABRASCO, REDE UNIDA, CEBES e outras, manifestaram não só a contrariedade a tal Portaria como pedem a sua revogação imediata. Isto porque entendem que a nova Portaria “acaba com Piso da Atenção Básica – PAB fixo, sem estudos robustos que evidenciem, objetivamente, seus impactos sobre a condição de saúde da população, a desigualdade de acesso nas regiões metropolitanas e a sustentabilidade econômica dos municípios.”

À luz das críticas acima, é possível afirmar que EC-95, aprovada em 2016, pelo Congresso Nacional, está combinada com a Nova Política Nacional de Atenção Básica – PNAB de 2017 e o Programa Previne Brasil de 2019, ambos de autoria do governo federal, e representam um risco ao SUS como um Sistema Universal de Saúde Pública. Isso porque, se a EC-95 diminui drasticamente o dinheiro para a saúde, as Portarias de 2017 e 2019 podem cumprir com o papel de fazer a gestão do dinheiro insuficiente. De que forma? Restringindo não só o acesso universal dos usuários – todos os brasileiros – ao SUS, mas também, a oferta das ações e serviços integrantes da rede de assistência do SUS.

É urgente a mobilização nacional de conselheiros de saúde, lideranças sociais e de toda população na defesa do SUS, na defesa pela vida de todos, pela imediata revogação da EC-95.

Estrutura tributária O tema da estrutura tributária não pode ficar de fora da agenda dos conselheiros e lideranças de saúde. Como sabemos, o financiamento das políticas sociais advém dos tributos e contribuições pagos pelo cidadão. Uma reforma tributária não pode significar pura e simplesmente o aumento de impostos, ou, então, a simplificação de tributação, mas deve contemplar a progressividade do sistema (invertendo o cenário de hoje, no qual o trabalhador, o pequeno e o microempresário são os que mais pagam impostos) e a justiça fiscal. Como sabemos, o imposto arrecadado sobre consumo é de quase 50%, enquanto que sobre propriedade e transações financeiras não chega a 5%, de acordo com os dados do IPEA, o que gera injustiça social e tributária. Além disso, existem dois elementos que pouco se publicizam e impactam fortemente no SUS, sendo de suma importância conselheiros e lideranças de saúde incluírem em suas agendas de discussões: o caráter regressivo e perverso da renúncia fiscal em saúde e o fato de gastos com planos privados de saúde e tratamentos privados (inclusive tratamentos estéticos) poderem ser descontados integralmente do Imposto de Renda. O IPEA, na Nota Técnica Radiografia do Gasto Tributário em Saúde – 2003-2013 demonstra que o valor total da renúncia, em 2013, somente na saúde foi de R$25,4 bilhões e que isso correspondia a 30,5% do orçamento da União para o SUS (orçamento Ministério da Saúde). Esta é uma forma de financiar o setor privado com dinheiro público e que retira recursos do SUS, discriminando pessoas, reforçando os privilégios em função de renda e indo contra o princípio constitucional da equidade. Para um maior aprofundamento, veja a Nota Técnicana íntegra. Para entender um pouco mais sobre a reforma tributária veja a cartilha no link.

PARTE 03 – Participação Social

Vimos no primeiro capítulo que os modelos de organização de sociedade resultam em modos diferentes de conceber a saúde. Também vimos que esses modelos de sociedades são construídos historicamente em contextos diversos, mas sempre há tensionamentos e disputas, realizados por sujeitos que sonham e acreditam em modelos diferentes e, principalmente, por sujeitos que percebem que estão tendo direitos negados, que estão sendo privados de viverem uma vida bem vivida e feliz. Essas disputas foram construindo, também, formas de organização política do Estado, ou seja, a forma como os sujeitos participam do governo do Estado e a forma como o Estado permite que seus cidadãos participem da vida política. Participar do governo do Estado é importante, pois ele é a instância reconhecida para gerenciar as relações sociais, econômicas, civis dos seus cidadãos. A depender do modelo de desenvolvimento seguido pelo governo, teremos conduções diversas, como vimos no segundo capítulo, na história das políticas de saúde no Brasil. Podemos ter um Estado que assume para si o dever de prover o direito à saúde, entendida no marco dos direitos humanos; ou podemos ter um Estado que entende que isso é responsabilidade de cada um e que, portanto, o mercado financeiro pode regular, responsabilizando-se por ações específicas e pontuais. Por isso, a forma como os cidadãos participam do governo também é disputada, dado o jogo de poder estabelecido. Historicamente, acumulamos vários regimes de organização política de um Estado: 
monarquiaparlamentarismodemocracia – democracia representativa e democracia participativa – e regimes totalitários, como as ditaduras. No Brasil, vivemos alguns desses modelos, como a monarquia, a ditadura e a democracia. Mesmo que atribuamos períodos específicos para cada um, não significa dizer que esses se constituam em regimes puros e totalmente isentos de outros regimes; podem existir, por exemplo, comportamentos e posturas de regimes totalitários em regimes aparentemente democráticos, e vice-versa.

Neste capítulo, não vamos estudar cada regime político, apenas descrevê-los de forma a podermos compreender a “participação social” prevista no SUS, como radicalização da democracia e importante instrumento de força para garantirmos a saúde como direitos de todos, no marco dos direitos humanos.

Regime político é a forma escolhida para organização e funcionamento de um Estado, inserido dentro de um modelo de sociedade. Está em constante disputa por vários segmentos da sociedade, dado o reconhecido poder na instituição. A forma de condução desse Estado, e também o modelo de sociedade seguido, influenciará a vida de cada pessoa no cotidiano. Por isso, todos os sujeitos devem participar e disputá-lo, pois é a forma de gerir a vida em sociedade que está em jogo.

3.1. Democracia

Todos e todas, em algum momento, já ouvimos falar de democracia e, de uma forma ou outra, já participamos dela e por ela. Quando votamos, quando participamos de uma audiência pública ou de uma conferência, quando fazemos uma reunião no bairro ou nos filiamos a um partido político, estamos usufruindo das várias ferramentas da democracia. Essa participação só é possível por estarmos em regime democrático. Para ser democrático, o regime pressupõe a participação dos cidadãos nos diversos espaços públicos. Democracia se fortalece e constrói com o exercício de sua prática.

A compreensão de “democracia” não tem interpretação única no Brasil e no mundo. Há disputas sobre formas de compreender regime democrático e, dependendo de qual compreensão predominar na condução da organização de Estado, teremos, consequentemente, uma compreensão de participação social. A participação social, no entanto, só é possível em regimes democráticos. Como conselheiros de saúde, como lideranças sociais, temos que estudar o tema, pois disso resultará a forma como a participação social do SUS será concretizada.

Para os gregos, “democracia” era o governo da maioria e, por isso, a soberania era exercida pelo povo. Demos significa “povo”, e crates, “poder”. Democracia é, assim, o poder do povo. Governo da maioria é um princípio básico fundamental da democracia ocidental, aplicada especialmente no processo eleitoral. Com algumas variações, a maioria dos países respeita o princípio da maioria como procedimento de escolha das suas autoridades. Um dos problemas reside em quem se constitui a maioria. Se olharmos para o Brasil, a universalização do voto – que incluiu mulheres, índios e analfabetos – só ocorreu em 1985, com a permissão do direito ao voto dos analfabetos. Até então, somente brancos, homens e donos de propriedades é que tinham o direito ao voto; logo, não era a maioria que escolhia seu governo, mas a minoria – assim, o governo era de alguns para alguns outros.

No Brasil, duas tendências democráticas tencionam a forma de realização da democracia: a representativa e a participativa. A democracia representativa é aquela em que o povo, por meio do voto, escolhe seus representantes, os quais deverão governar de acordo com a Constituição do povo. Nessa concepção de democracia, a participação social se dá pelo voto, e os representantes escolhidos – os eleitos – deveriam representar os interesses dos seus eleitores, concebendo seus mandatos não como suas propriedades, mas como representação de grupos sociais e do povo. Os grupos sociais não participam diretamente do governo e da tomada de decisões, mas indiretamente, pelos seus representantes. O problema é que muitas experiências, tanto no Brasil quanto no mundo, têm mostrado que essa relação entre representantes e representado nem sempre é nutrida pelos interesses dos representados.

A democracia participativa se desenvolve a partir da democracia representativa e entende que a participação do povo se dá não somente pela escolha de seus representantes, mas também por outras formas de participação no governo, por meio de plebiscitos, referendos, audiências públicas, conselhos e conferências de políticas públicas. Essa forma de democracia tenta aproximar o governo do Estado com seus governados, de maneira a entender melhor seus anseios e necessidades e fazer um governo que atenda essas demandas. Essa forma de entender a democracia, incorporada pelo SUS no Brasil, permite um maior diálogo e controle das políticas públicas.

O participar do governo do Estado é um tensionamento e luta, pois ainda mantemos resquícios de regimes anteriores, como Império, ditadura. Aliás, em pouco mais de 500 anos de Brasil, segundo algumas estatísticas, temos menos de 10% desse período como regime político democrático. Em 2015, o Brasil completou três décadas de experiência continuada da democracia, o mais longo período de eleições livres de interrupções, ou seja, de golpes. Isso significa que ainda temos muito a avançar e crescer na democracia para que possamos fortalecer e radicalizar este regime, evitando golpes de Estado e o rompimento com processos que sejam legítimos e democráticos.

Nesse curto tempo de exercício democrático, o Brasil desenvolveu algumas boas experiências de democracia participativa, como a participação social ratificada pelo SUS, reconhecendo-a como parte estruturante da sua política. O SUS, mais que uma política pública de saúde, é um modelo de desenvolvimento social e político. Outras experiências também são relevantes, como as das áreas da educação, assistência social, alimentação, ambiental, moradia, reforma agrária e direitos trabalhistas, e estão dentro da lógica da compreensão de democracia além da mera representação. Afinal, de que tipo de participação social estamos falando? Antes de explicarmos o conceito de “participação social” incorporado pelo SUS, é necessário retomarmos a origem do conceito de “controle social” no Brasil, para entendermos algumas posturas e comportamentos assumidos por alguns em nome da “participação social”. Estamos acostumados a falar de controle social como sinônimo de participação social; outras vezes, usamos o conceito em outro sentido, mas sempre consideramos o controle da sociedade sobre o Estado – nem sempre foi assim. No período da ditadura civil e militar, era o Estado que exercia o controle sobre a sociedade, privando-a do direito de participar dos espaços públicos em qualquer dimensão, desde os conselhos estudantis até a escolha dos representantes do governo. Quem ousasse romper ou afrontar esse controle sofria graves punições, como a tortura e o exílio. Foi nesse período que se disseminou erroneamente a compreensão de “direitos humanos” como defesa de bandidos, pois os “bandidos”, naquele contexto, eram as lideranças de movimentos sociais, sindicais e partidos políticos que ousavam romper com esse controle do Estado, garantindo a liberdade e os direitos para todos. Ou seja, é o que hoje chamamos de “criminalização de sujeitos e movimentos sociais”.

Durante a redemocratização do Brasil, muitos cidadãos lutaram para que o controle social fosse da sociedade para com o Estado, e não vice-versa, uma vez que se compreendia o Estado como aquele que está a serviço do povo. Esses cidadãos lutavam pela redemocratização e também pela radicalização da democracia.

Também vale lembrar que, quando falamos de democracia, não se está falando apenas do cumprimento formal das regras de seu funcionamento; a democracia pressupõe a realização de direitos. É no sistema democrático que a noção do Estado que garante o direito das pessoas é fortalecida. Ou seja, o que se espera da democracia não é apenas o cumprimento formal do processo eleitoral ou da possibilidade de exercer a liberdade individual, mas, fundamentalmente, a realização dos direitos, como educação, saúde, previdência e moradia. Aliás, só há avanço ou consolidação da democracia quando o regime é capaz de atender as demandas de seus cidadãos. Em outras palavras, significa dizer que, quando mais os direitos estão garantidos, mais a democracia fica consolidada.

Reforma do sistema político Os conselheiros e lideranças de saúde devem se inteirar dessa importante agenda no Brasil que é a reforma política. Não se trata apenas de uma reforma do sistema eleitoral, ou seja, da organização partidária e da periodicidade das eleições; acima de tudo, refere-se a questões estruturais que provoquem as transformações necessárias nas instituições políticas e no exercício do poder, como, por exemplo, romper com estruturas patriarcais, imperialistas, étnico-raciais, geracionais e econômicas. Outro limite de uma proposta centrada apenas no sistema eleitoral é não incidir na descentralização e democratização dos meios de comunicação e da discussão da democratização do poder judiciário sem interferir na sua autonomia. Portanto, reforma do sistema político é muito mais que uma reforma eleitoral.

3.2. Participação e controle social na saúde

Para entendermos o conceito de “participação social” incorporado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), é preciso termos presente a luta pelo direito humano à saúde protagonizada pelo Movimento da Reforma Sanitária e, também, a compreensão de democracia participativa. Reconhecer a participação social como uma das diretrizes do SUS significa entender que a população local, por meio dos Conselhos e das Conferências de Saúde, contribui com a consolidação do SUS, desde a troca de informações, de debates, experiências, proposições e deliberação, até a socialização e a avaliação da política pública. Ou seja, a população torna-se sujeito ativo da política pública de saúde, e não mera receptora ou expectadora. Em outras palavras, o SUS incorpora a concepção de que a participação da comunidade é fundamental para a ampliação da democracia e para a efetivação das políticas públicas de saúde.

O problema é que, muitas vezes, o termo “participação social” é visto por perspectivas e entendimentos diversos. Há uma tendência, por exemplo, que insiste que o termo está atrelado ao conceito de “controle social” como accountability e o reduz à fiscalização e avaliação. Para esses, discutir, propor, elaborar políticas públicas e pensar modelo de Estado é papel restrito aos gestores eleitos pelo povo, com capacidade técnica para isso. Dessa compreensão, resulta a falsa ideia de que controle social no SUS é sinônimo de gestão técnica do sistema, descaracterizando o sonho sonhado pelos milhares de brasileiros que lutam pelo direito humano à saúde.

De outro lado, há a compreensão resultante do movimento da reforma sanitária, que entende participação social ou controle social como participação em todo o processo da política pública, desde a proposição até a fiscalização e avaliação, passando pelo planejamento, monitoramento, acompanhando, inclusive o modo como o dinheiro público é usado na execução das políticas públicas. O controle social é entendido como a participação efetiva da comunidade na gestão do SUS. Dessa maneira, controle social é mais que fiscalização, é a comunidade propondo e definindo o serviço público que ela deseja em cada área. No caso da saúde, significa a comunidade decidir quais as políticas públicas de saúde pretende que sejam implementadas. É um diálogo entre o poder público e a sociedade.

Compreender controle social nessa ótica é compreendê-lo como parte do processo decisório, é torná-lo parte da gestão do Estado. Controle social, nessa compreensão, é um dos instrumentos para radicalizar a democracia. A radicalização da democracia, segundo Boaventura de Sousa Santos (2008), pode ser feita por duas vias: 1) pelo aprofundamento da partilha de autoridade; 2) e estendendo-a a um número cada vez maior de domínios da vida social, transformando-a num princípio potencialmente regulador de todas as relações sociais. A relação entre a sociedade civil e o Estado está permeada por esse tensionamento normativo conceitual de controle social. Por um lado, os espaços formais de participação social aumentaram desde a Constituição de 1988; por outro, há inúmeros desafios a serem superados: desde o esvaziamento da participação social – resultado da compreensão neoliberal de Estado – até a falta de reconhecimento pelo Estado desse espaço de poder decisório. Se quisermos falar em “radicalização da democracia”, precisamos enfrentar esse pano de fundo que se estabelece na relação entre Estado e sociedade civil para rediscutir qual o papel de cada um e, também, qual o modelo de democracia.

Ao reconhecer os Conselhos e Conferências como espaços de discussão e decisão sobre a política de saúde nas três esferas de gestão – municipal, estadual e federal –, o SUS consolida uma noção de “democracia” além da puramente formal. Ao fazer com que, ao menos uma vez por mês – os conselhos se reúnem, em média, mensalmente –, centenas de milhares de pessoas sentem e discutam sobre o SUS, o modelo de participação na saúde consolida uma prática participativa democrática fundamental. Além disso, em tempos de discussão e necessidade de reformas no sistema eleitoral brasileiro, o modelo participativo do SUS tem muito a contribuir, pois já conseguiu avançar em temas que estão na pauta das questões que uma possível reforma do sistema eleitoral deveria contemplar. Um desses temas é a participação dos diferentes segmentos que devem ser representados nos espaços participativos. Enquanto o sistema eleitoral é profundamente marcado pela sub-representação, nos Conselhos e Conferências, a paridade e representação de mulheres, negros, índios e outros segmentos estão garantidas. Daí a importância da participação social para a consolidação da democracia.

3.2.1. Instâncias oficiais de controle social na saúde

As instâncias de controle social previstas na Lei 8142/90, no seu art. 1º, são as Conferências e os Conselhos de Saúde. Vejamos em que consiste cada uma.

Conselhos de Saúde

Conselho de Saúde é uma das instâncias de controle social prevista na Lei 8142/90, que afirma o seguinte:

2° – O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo .

Vamos por partes. Ao dizer que o conselho tem caráter permanente, a lei está afirmando que a instância deve sempre existir, independentemente da vontade do gestor. Em outras palavras, o conselho não pode ser extinto por nenhuma autoridade local. Isso garante autonomia e poder. Dessa forma, o Conselho de Saúde é instituído por lei – federal, estadual ou municipal –, não podendo contrariar a legislação do SUS. Ao atribuir um caráter deliberativo ao Conselho de Saúde, a lei reconhece seu poder de deliberar, de decidir sobre assuntos de saúde do seu município, estado ou da União. Isso quer dizer que o conselho tem o poder de dizer sim ou não, aprovar ou desaprovar contas ou ações da política de saúde, e esta decisão deverá ser seguida e respeitada. O Conselho de Saúde não é um espaço de representação dos interesses pessoais, da família ou de parentes do conselheiro, mas de representação das diferentes entidades da sociedade que lutam e defendem os direitos humanos. É por isso que o conselho é um órgão colegiado. Representantes de diferentes segmentos da sociedade – mulheres, negros, deficientes físicos, sindicatos, associações de moradores, trabalhadores da saúde, prestadores de serviços de saúde (hospitais e clínicas) e gestores (secretários e coordenador regional de saúde do governo estadual) – participam do Conselho de Saúde.

O Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução 453, de 10 de maio de 2012, aprovou as diretrizes para instituição, reformulação, reestruturação e funcionamento dos Conselhos de Saúde. É importante que o conselheiro de saúde estude e conheça essa resolução.

A Lei 8142/90 diz que o Conselho de Saúde deve ser organizado de forma paritária entre dois grupos: usuários e gestores, profissionais e prestadores (veja quadro). “Paritário” significa que o número total de conselheiros dos dois grupos deve ser igual, ou seja, no conselho, o número de usuários nunca pode ser menor que o do total de gestores, profissionais e prestadores. O conselho está constituído conforme apresenta a tabela a seguir:

A mesa coordenadora e as comissões devem ser constituídas respeitando-se a paridade, e devem ser votadas pela plenária.

O conselho tem autonomia para estabelecer, por meio de seu regimento interno, as regras de funcionamento. Alguns pontos são fundamentais e devem estar no regimento. Entre eles:

  1. estabelecer reuniões ordinárias, no mínimo mensais, com calendário, horário e local definidos (ex.: segunda quinta-feira de cada mês, às 19h, na Câmara de Vereadores). Isso é importante para que todos os conselheiros e a comunidade se programem para participar, evitando também que o gestor marque reuniões de última hora com o objetivo de esvaziar o plenário;
  2. secretariar todas as reuniões para que as decisões fiquem registradas em ata – que deve ser lida, aprovada e assinada pelos conselheiro;
  3. formular resoluções das principais decisões do Conselho;
  4. estabelecer algumas comissões internas para facilitar os trabalhos (ex.: comissão de fiscalização, comissão de finanças, comissão técnica, comissão de educação permanente). Essas comissões devem estudar as matérias específicas e levar seus pareceres para o plenário do Conselho, facilitando o entendimento do assunto e, com isso, as votações. A Comissão de Educação Permanente é um espaço importante para os conselheiros aprofundarem o debate em torno do SUS, proporcionando momentos coletivos de estudo e aprofundamento do tema (ex.: uma dinâmica bimestral interna pode permitir que o Conselho de Saúde se reúna para estudar e refletir sobre determinado tema. Pessoas externas podem, também, ser convidadas ou textos, selecionados. Tarefas podem ser distribuídas entre os conselheiros);
  5. as pautas das reuniões ordinárias dos Conselhos devem ser definidas com antecedência pela coordenação da mesa. É preferível, porém, que a pauta seja definida pela plenária da reunião anterior, para que todos os conselheiros estejam preparados para debatê-las (ex.: a pauta do mês de junho deve ser definida na reunião de maio, e todas as informações sobre os temas do encontro devem chegar às mãos dos conselheiros, no mínimo, oito dias antes do debate). Os assuntos emergenciais podem entrar no ponto “assuntos gerais” ou, se necessário, será convocada uma reunião extraordinária, desde que os conselheiros sejam avisados com antecedência. Essa dinâmica permite, ainda, que os Fóruns de Saúde tenham tempo para debater essas pautas e contribuir com a posição a ser definida pelos conselheiros;
  6. entender que o papel do conselheiro é político e não somente técnico. Nesse sentido, é importante que a pauta das reuniões do Conselho não fiquem atreladas somente à burocratização, mas que seja espaço de discussão e definição da política de saúde no município. Os conselheiros devem demandar a pauta e não somente o gestor da saúde.

Conferências de Saúde

As Conferências de Saúde são um espaço de ampla participação da comunidade e têm o papel de avaliar a política pública de saúde periodicamente – a cada dois ou quatro anos. A conferência tem o papel de formular as diretrizes da política de saúde para determinado período, além de orientar a elaboração do Plano de Saúde. A ação do Conselho deve estar em consonância com o discutido na Conferência.

Segundo a lei 8142/90, a Conferência de Saúde deve ser reunir a cada quatro anos, com representação dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação da saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, pelo Conselho de Saúde. É na Conferência de Saúde que o povo avalia, orienta e decide os rumos da saúde em cada esfera de governo: federal, estadual e municipal.

As conferências não devem se limitar à escolha de delegados. Por isso, é importante que sejam precedidas pelas pré-conferências, que contribuem na mobilização e na discussão da temática da Conferência de Saúde. No caso dos municípios, as pré-conferências podem ser realizadas nos bairros ou regiões. As Conferências de Saúde também devem respeitar o princípio da paridade na eleição de delegados. Delegados são aqueles que têm direito a voto; no entanto, todos os participantes têm direito a voz. A comunidade deve se organizar e participar desse espaço, avaliando e sugerindo diretrizes para a saúde.

O Conselho de Saúde deve acompanhar o processo de convocação e mobilização e influenciar na escolha do tema geral e das temáticas específicas a serem discutidas na Conferência de Saúde. É importante que o Conselho de Saúde também contribua na construção de uma boa metodologia, para que as pessoas participem ativamente da Conferência. Quanto mais informações as pessoas tiverem sobre a realidade da saúde, mais poderão contribuir com a construção do processo. Por isso, é importante que os conselhos e fóruns subsidiem a comunidade com dados epidemiológicos, sociais e econômicos de seu município.

O espaço da conferência não pode se limitar a falas do gestor apresentando o que fez durante sua gestão. Sim, isso é importante, mas a Conferência é o momento de a comunidade avaliar a política de saúde, apontar os desafios e elencar as prioridades. O espaço da Conferência deve ser um momento de escuta para os gestores.

A Conferência antecede a elaboração do Plano Municipal de Saúde.

16ª Conferência de Saúde Aconteceu em agosto de 2019 a 16ª Conferência Nacional de Saúde, tendo como tema central “Democracia e Saúde” e três eixos principais: Saúde como Direito, Consolidação dos Princípios do SUS e Financiamento do SUS. A realização da 16ª Conferência é um marco importante para a luta pelo SUS e pela democracia em um contexto em que o SUS vem sofrendo graves ameaças e retrocessos sociais. A 16ª conferência de Saúde também faz um resgate da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, primeira conferência aberta à participação da população; e o resultado da Conferência serviu de base para a elaboração do texto da seção “Da Saúde” da Constituição Brasileira de 1988. Veja mais em: Site da 16 ª conferência Relatório da 16ª conferência

3.3. Ciclo orçamentário e instrumentos de planejamento no SUS

Segundo a Portaria de Consolidação nº 01/2017 de 02/10/2017, em seu artigo 95, “Os instrumentos para o planejamento no âmbito do SUS são o Plano de Saúde, as respectivas Programações Anuais e o Relatório de Gestão.” Abaixo veremos um pouco de cada um.

3.3.1. Plano Municipal de Saúde

O Plano Municipal de Saúde é um instrumento estratégico para o SUS, porque prevê o planejamento das ações para o período de quatro anos. É importante que seja elaborado no primeiro ano de mandato de determinado gestor, isto é, enquanto administra a saúde baseado no plano da gestão anterior, elabora o próximo. O Plano de Saúde é a base para a execução, o acompanhamento e a avaliação da gestão do SUS. Nele, deverão constar todas as áreas da atenção à saúde, da atenção básica à alta complexidade, assegurando a integralidade.

Para a elaboração do plano de saúde, é necessário considerar, além das diretrizes definidas pelas conferências de Saúde:

  1.  A análise situacional da saúde (estrutura do sistema de saúde, redes de atenção à saúde, condições sociossanitárias, fluxos de acesso, recursos financeiros, entre outros); b) a definição das diretrizes, objetivos, metas e indicadores; c) o processo de monitoramento e avaliação. Depois de considerados esses elementos para sua elaboração, o gestor deve submeter o plano à apreciação e aprovação no Conselho de Saúde.

Os conselheiros de saúde devem discutir e analisar, com o devido tempo necessário, a proposta do Plano de Saúde. É preciso verificar e conferir se as demandas da população e as diretrizes da Conferência estão contidas no plano; para isso, é necessário um período de tempo considerável. É aconselhável que o conselho constitua comissões específicas para discuti-lo. Para garantir a previsão orçamentária à execução do Plano de Saúde, a portaria de consolidação 01/17 estabelece que o documento deverá observar os prazos do Plano Plurianual PPAdefinidos nas leis orgânicas. Essa é uma grande novidade, assegurada pela portaria, e fruto de muita reivindicação dos Conselhos de Saúde e do movimento social. Essa medida proporciona que os compromissos assumidos no Plano de Saúde tenham previsão orçamentária adequada e, que, portanto, tornem sua execução possível. Do contrário, poderá haver um belo Plano de Saúde mas que não terá nenhuma previsão orçamentária, tornando-se belas intenções com efetividade nula.

O gasto em saúde deve constar no plano e ser elaborado pelo gestor nacional, estadual e municipal. Conforme a Lei 8.080/90, §2º, “é vedada a transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos de saúde, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública, na área de saúde”. Trata-se de condição necessária para o repasse de recursos, ou seja, se não existir plano de saúde não recebe recursos financeiros.

Neste sentido, o Plano não poderá ser feito sem atentar para a portaria de Consolidação nº 01/2017 de 02/10/2017, artigos 95 e 96 que tratam especificamente sobre a elaboração do plano de Saúde. Essa portaria estabelece as diretrizes para o processo de planejamento no SUS. O fato importante e novo que essa portaria traz em seu Art. 94, inciso V, é a compatibilização entre os instrumentos de planejamento da saúde (o Plano de Saúde com as suas respectivas Programações Anuais e o Relatório de Gestão) e os instrumentos de planejamento e orçamento de governo: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) em cada região. Deve, portanto, o Plano de Saúde observar os prazos de PPA conforme lei orgânica de cada ente federado. Esses artigos são importantes porque é o PPA que define as diretrizes orientadores da LDO, que, por sua vez, orienta a construção da LOA, que estabelece quanto o município irá gastar em cada setor. Se queremos que o Plano de Saúde esteja no orçamento e nas metas do município, devemos elaborá-lo antes do PPA, pois, do contrário, as grandes ações de saúde serão construídas sem a conferência, a análise situacional da área no município e a participação do conselho, que tem por função aprovar o Plano de Saúde.

Etapas do orçamento público Plano Plurianual (PPA): é elaborado no primeiro ano do novo governo e entra em vigor no segundo ano do mandato, estendendo-se até o primeiro da administração seguinte. Contempla as grandes diretrizes que o município, o estado ou a União pretendem fazer durante o tempo de vigência de uma gestão e os meios para realizá-las, e deve ser aprovado pelo poder legislativo. É importante o Plano de Saúde estar em consonância com o PPA, pois, se as diretrizes do Plano de Saúde não estiverem no PPA, elas seguramente não se concretizarão. Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO): é o detalhamento do PPA para o período de um ano. Lei Orçamentária Anual (LOA): após a aprovação do PPA e a especificação na LDO, na LOA, o poder executivo apresenta a proposta de como irá efetivar financeiramente as diretrizes.

3.3.2. Relatório de gestão

Segundo a portaria de Consolidação nº 01/2017, artigo 99, o relatório de gestão é “O instrumento de gestão com elaboração anual que permite ao gestor apresentar os resultados alcançados com a execução da Programação Anual de Saúde (PAS) e orienta eventuais redirecionamentos que se fizerem necessários no Plano de Saúde.” Deverá contemplar os seguintes itens: I – as diretrizes, objetivos e indicadores do Plano de Saúde; II – as metas da PAS previstas e executadas; III – a análise da execução orçamentária; IV – as recomendações necessárias, incluindo eventuais redirecionamentos do Plano de Saúde.

O prazo para envio ao Conselho de Saúde é até 30 de março do ano subsequente ao da execução financeira. O Conselho, após análise, emite seu parecer conclusivo sobre o relatório através do DigiSus.

Além do Relatório Anual de Gestão, há o relatório detalhado do Quadrimestre Anterior. Este tem o objetivo de monitorar e acompanhar a execução da PAS, e deve ser apresentado pelo gestor ao Conselho até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro. O modelo para apresentação do respectivo relatório deverá seguir o padronizado na resolução n. 459 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde, e conter no mínimo informações sobre o montante e a fonte dos recursos aplicados no período; auditorias realizadas; oferta e produção de serviços públicos na rede de assistência própria, contratada e conveniada, comparando com os indicadores de saúde da população local.

Muitas vezes, pelo fato de o Relatório de Gestão ser mais técnico e de muitos números, alguns conselheiros enfrentam dificuldades para entender. Isso não significa nenhum demérito para os conselheiros. O conselheiro de saúde precisa ter tempo para olhar e esclarecer todas as dúvidas sobre o relatório e, caso necessitar, contar com assessoria especializada. O que não pode é, por não entender, simplesmente aprovar. Os números do Relatório de Gestão precisam traduzir ações e serviços de saúde executados no munícipio e estar de acordo com o Plano Municipal de Saúde e com a Programação Anual de Saúde.

3.3.3. Programação Anual de Saúde

Segundo a portaria de Consolidação nº 01/2017 de 02/10/2017, em seu artigo 97, “A Programação Anual de Saúde (PAS) é o instrumento que operacionaliza as intenções expressas no Plano de Saúde e tem por objetivo anualizar as metas do Plano de Saúde e prever a alocação dos recursos orçamentários a serem executados.” Isto quer dizer que a PAS tem o objetivo de explicar quais das ações previstas no Plano Municipal de Saúde serão executadas no ano, prevendo os recursos necessários para tal.

Para atender o objetivo, o PAS deverá conter a definição das ações que, no ano específico, garantirão o alcance dos objetivos e o cumprimento das metas do Plano de Saúde; a identificação dos indicadores que serão utilizados para o monitoramento da PAS; e a previsão da alocação dos recursos orçamentários necessários ao cumprimento da PAS.

É importante que os conselheiros atentem ao prazo de aprovação, pois, assim como o Plano Municipal de Saúde precisa ser aprovado antes do PPA, a PAS precisa ser aprovada antes da LDO, a fim de garantir os recursos orçamentários previstos.

3.4. Três décadas de participação e controle social na saúde

O que acabamos de descrever não deve ser estranho ao leitor. Mesmo que não tenha se envolvido de forma direta, você já deve ter visto ou ouvido falar do Conselho de Saúde ou da Conferência de Saúde – há mais de duas décadas estamos construindo essa experiência no País. A cada quatro anos, cartazes aparecem nas unidades de saúde chamando para a conferência; volta e meia ouvimos falar no rádio da reunião do Conselho ou de uma denúncia apresentada ao Conselho que ganhou repercussão na cidade. Alguém poderia se perguntar sobre sua relevância, poderia se questionar dizendo “se não existissem esses espaços, o SUS já teria sido extinto?” É sobre isso que queremos discutir agora.

Já dissemos que as mobilizações em prol da saúde pública resultaram no SUS que temos hoje. Explicamos, também, que o modelo implementado, sobretudo por conta dos Conselhos e das Conferências, compreende a democracia além da mera representação. Além disso, os milhares de conselheiros espalhados pelo Brasil têm contribuído, em mais de duas décadas, para o aperfeiçoamento da política de saúde, para a transparência na gestão da política de saúde e, sobretudo, para o fortalecimento da experiência democrática participativa. Sem dúvida, o papel da participação e do controle social no SUS é central, às vezes, para avançarmos nas políticas de saúde e, às vezes, para não retrocedermos. Apesar disso, enfrentam-se atualmente tentativas de enfraquecimento da atuação e do reconhecimento da importância do papel dos conselhos.

Os dois espaços institucionalizados de participação na saúde são os Conselhos – municipal, estadual e nacional – e as Conferências – que ocorrem a cada dois ou a cada quatro anos. Quem está há mais tempo nos Conselhos sabe das dificuldades que muitas dessas instâncias enfrentam para cumprir com o exercício do controle social, fazendo com que muitas vezes os Conselhos não funcionem como deveriam. Não há reuniões periódicas; o presidente ou coordenador do conselho é indicado pelo gestor, alguns dos conselheiros seguem os interesses da gestão e, em casos mais graves, há conselhos que sequer se reúnem. Paralelamente a isso, os Conselhos que funcionam melhor têm imensa dificuldade de reunir novas lideranças. Nas eleições para a composição do Conselho, há sempre uma dificuldade para preenchimento de todas as vagas, quase sempre uma ou duas vagas ficam sem nenhum representante. Fica a impressão de que, cada vez mais, estamos fragilizados, não conseguimos renovar e reoxigenar os nossos espaços participativos. Além disso, embora o Conselho seja palco de bons debates e de definição da política de saúde – aprovamos os planos de saúde, aprovamos o Plano Anual de Saúde, aprovamos as contas da gestão –, muitas vezes temos a sensação de que nossa ação não está fortalecida o suficiente para conseguirmos incidir estruturalmente na política pública de saúde. Os problemas são os mesmos há anos: faltam profissionais de saúde, não há concurso público e as unidades de saúde não atendem as demandas.

No mais recente período, além de não avançarmos na solução de problemas estruturantes do SUS, dia após dia enfrentamos tentativas de precarização e desmonte do sistema. Além disso, a própria ação dos conselheiros de saúde vem sendo duramente criminalizada e fragilizada, ferindo gravemente os princípios da democracia e fortalecendo a ideia de que a participação social atrapalha a gestão e onera os cofres públicos. Este ano, por exemplo, o governo federal publicou o decreto 9.759/2019, que extingue colegiados (conselhos, comitês, comissões), importantes espaços de participação social no Estado, exercício da democracia participativa, constituídos por decretos. O Conselho Nacional de Saúde não entrou nesse rol porque é estabelecido por lei. A constituição do Conselho por lei é resultado da luta da participação social e, por isso, a força da continuidade, apesar das enormes dificuldades e tentativas de desmonte, está na união e no fortalecimento daqueles que sonham o sonho SUS, inclusive nos espaços de Conselhos e Conferências.

Os mesmos fatos ocorrem nas Conferências: os temas discutidos e os extensos relatórios produzidos são sempre idênticos, as propostas são sempre as mesmas. Parece que paramos no tempo e fica a impressão de que a gestão pública apenas faz de conta que as Conferências são espaços de definição das grandes diretrizes que orientam a construção dos planos de saúde.

Após três décadas de participação e controle social no SUS, temos enfrentado enormes desafios para resistir e fazer controle social no SUS. Exemplo dessa fragilidade é a apatia diante dos recentes retrocessos na política de saúde. Precisamos, portanto, reinventar os espaços, repolitizar nossos debates e rearticular nossas forças.

No entanto, os desafios e as fragilidades da participação social enfrentada no SUS não significam o abandono da luta, mas a necessidade de fortalecimento, de estratégias organizadas e articuladas nos espaços institucionais do controle social. O desafio é tornar os espaços dos Conselhos pontos de resistência e enfrentamento do desmonte dos direitos proposto pelos governos neoliberais que atingem a política pública de saúde.

A Defesa do SUS pressupõe a defesa da democracia! Para isso, necessita-se de conselheiros de saúde fortalecidos, animados e compreendidos com a luta.


PARTE 04 – Educação popular e processos formativos de fortalecimento do SUS

Na introdução, destacamos que a formação é entendida aqui como um processo. Ainda, que esta cartilha é parte dele e esperamos que ela possa contribuir para o fortalecimento de espaços, movimentos e dinâmicas organizativas populares para que possam sustentar as lutas pelo direito humano à saúde. Espera-se, da formação, o fortalecimento da atuação institucional, mas também a ampliação da atuação para além dos espaços institucionais do SUS, isto é, dos Conselhos e das Conferências.

Se formação é processo, significa que ela não se reduz a um evento, que se realiza em um período de tempo determinado e que, na sequência, aquele/a que participou está pronto/a e acabado/a. Pelo contrário, formação pressupõe um exercício permanente de aberturas, de trocas, de encontros, de leituras, de pesquisas, de rodas de conversas, de sonhos e utopias. Contrariamente ao que muitos acreditam, utopia não é a mesma coisa de “algo impossível”, de “algo não alcançável”; utopia é a força que nos movimenta, que nos faz sermos aquilo que ainda não somos. A utopia é a força que nos move e nos faz lutar por um país melhor, por um SUS que pode “ser mais”, que realize a saúde como direito humano de todos e todas.

A formação para o controle social no SUS só tem sentido se ela estiver permeada por essa utopia, essa força que impulsiona o agir e a luta pela transformação da realidade para melhor. O compromisso com a transformação da realidade é parte fundamental do processo formativo. Deve estar no horizonte dos participantes o engajamento social para melhorar as condições de vida das pessoas. Para isso, a organização é um componente fundamental; do contrário, nossas forças não se multiplicarão e correm o risco de se perderem pelo caminho. Quando nos organizamos, nossas forças se multiplicam e o resultado, a exemplo das equações matemáticas, aumentam, cada vez mais. Este é o sentido de pensar a formação junto a processos de multiplicação.

Então, eu sou um multiplicador da luta pelo fortalecimento do SUS? Ao responder afirmativamente a essa pergunta, podemos pensar: “mas eu não sei falar em público”, “mas eu não tenho estudo”, “mas…”. Quem sabe, antes de apresentar todas essas condições, vamos compreender o que entendemos por “multiplicação”, o que significa ser multiplicador/a e como qualquer um de nós, independentemente do lugar, da carreira acadêmica, da posição social, da religião ou de qualquer outra condição, é capaz, sim, de multiplicar e fomentar a luta pela garantia de nossos direitos.

4.1. Entendendo o significado de multiplicação em processos formativos populares

Antes de entendermos o que significa “multiplicação” em processos formativos, precisamos superar a separação entre teoria e prática. Nossa sociedade separou, como se fosse possível, aspectos que formam uma unidade: a teoria e a prática. Ora, uma teoria sem prática é nula, e uma prática sem teoria é vazia. A teoria conduz para uma prática, e a prática pressupõe uma teoria. Essa dicotomia na luta pelo SUS precisa ser superada. Precisamos unir teoria e prática para de fato termos uma ação completa e com sentido, reconhecendo a importância da diversidade e da pluralidade nos processos de luta do SUS.

A formação entendida como processo envolve teoria e prática. A multiplicação é parte integrante do processo, portanto é, ao mesmo tempo, teórica e prática. Teórica porque elabora, sistematiza saberes; e prática porque “faz”, porque age. Age em vista da luta pelo SUS, da luta pela democracia. A ação da multiplicação está permeada pela força impulsionadora do sonho SUS. Então, a multiplicação não pode ser resumida como o “teminha” prático da formação. É muito mais que isso, como veremos a seguir.

Multiplicar também não se resume ao informe de processos formativos. Por exemplo, eu participei da formação, volto para o Conselho e me limito ao relato sobre o curso participado. Isso é importante, mas insuficiente. Multiplicação precisa ir para além dessa ação.

Multiplicar não é só reproduzir, replicar o curso para outras pessoas. Não é repetir tal e qual a experiência vivida na etapa presencial. Você pode até se inspirar na metodologia, no conteúdo, nas problematizações, mas multiplicar implica uma ação articulada a dinâmicas e sujeitos populares comprometidos com a luta do SUS que, a partir do encontro, ou de encontros, criarão estratégias de fortalecimento do grupo e da luta, e não apenas uma mera reprodução para cumprimento de uma tarefa recebida.

Multiplicar não deve se limitar ao domínio de determinadas ferramentas pelos conselheiros. O ensinar e aprender é maior que a simples apreensão de algumas técnicas. Aprender sobre como analisar Relatórios de Gestão, Conferência de Saúde, Plano Municipal de Saúde é muito importante e necessário, mas a multiplicação não pode se resumir a isso. Multiplicar implica aliar o domínio dessas ferramentas à luta política de defesa do SUS e da democracia, pois de nada adianta saber analisar um relatório de gestão se o controle social não puder ser exercido ou se não existir mais a política pública de saúde.

Então, podemos dizer que a multiplicação implica a comunicação, o desenvolvimento de conteúdos e metodologias, tem a capacitação de determinadas ferramentas e está articulada com processos organizativos políticos de defesa e luta pelo SUS. É uma estratégia articulada de agir como liderança social na saúde.

Sim, multiplicar é um ato político. Política relaciona-se, entre outros, ao exercício do poder. Por isso a multiplicação é um ato político: ao divulgar, contar de forma organizada e estratégica para as pessoas a importância de um Estado que garanta o direito à saúde para todos, está fazendo política. Isto quer dizer que se está empoderando o povo para lutar pelos seus direitos e pelo direito à vida.

Exercer o poder significa ter força para decidir, seja em casa, na comunidade, no âmbito do Estado. Fazer multiplicação atrelada a processos organizativos para defesa e luta pelo SUS é uma estratégia de poder, de participar da decisão dos rumos a serem tomados no País. Por isso a importância de multiplicar, de buscar mais pessoas que sonham o sonho do SUS, de divulgar e contar o sonho do SUS para termos força política de decisão e, cada vez mais, transformar este sonho em realidade.

Sermos multiplicadores significa dizer que somos sujeitos da luta pelo direito humano à saúde. Por isso, é preciso organizar e fortalecer a ação com outras pessoas que sonham o sonho SUS, criando pontos de resistência às medidas neoliberais implementadas no Brasil, que ameaçam e tiram direitos e pontos de encontros motivadores e revigoradores da luta.

4.2. O que se espera com a multiplicação em processos organizativos

O maior objetivo com a multiplicação é aumentar a força na luta pelo fortalecimento do direito humano à saúde para todos, pois entendemos que a vida de todos vale, e vale muito. Esse processo que estamos nos desafiando a construir já estabeleceu algumas estratégias para contribuir nessa organização de multiplicadores do SUS. Porém não é um processo fechado, ele provoca criativamente para que outras estratégias sejam construídas, reconstruídas no e pelo próprio processo formativo.

A primeira delas é a ação articulada entre os sujeitos participantes das oficinas de formação com as Comissões de Educação Permanente para o controle social no SUS dos Conselhos Estaduais de Saúde e do Conselho Nacional de Saúde. Como se dará essa relação, estaremos discutindo e elaborando nas oficinas. Entendemos que, ao articularmos as Comissões de Educação Permanente para o controle social no SUS como um ponto de articulação e união das nossas ações e forças, estamos criando uma rede ampliada e organizada de luta pelo SUS.

A segunda delas é a mediação pelos movimentos sociais populares e entidades participantes das oficinas. No entanto, não se está dizendo que serão criados dois processos paralelos, mas processos mediados por sujeitos diversos que dialogam e convergem entre si, fortalecendo a articulação e a mobilização estratégica das ações. O objetivo dessa estratégia é tornar a luta pelo direito humano à saúde agenda dos movimentos sociais populares e entidades para fortalecermos os pontos de resistência ao desmonte no SUS e a luta pela garantia do direito humano à saúde.

4.3. Fazendo a multiplicação

Para fazer essa discussão, recorremos ao poema de Morris West, no livro Embaixador; assim ele se referia a uma tribo: “Achavam-se agrupados e presos à terra, por uma raiz comum, como uma moita de bambu. E, como esse vegetal, inclinavam-se e dobravam-se. Mas sobreviviam às maiores tempestades.” O que vai dar sustentação à multiplicação na luta pelo SUS são “essas moitas” unidas pela raiz comum e que sobreviveram às tempestades, isto é, a sustentação da multiplicação só será possível se tivermos pessoas unidas pelo sonho SUS e que serão pontos de resistência e proposição. Esses que serão o movimento, o alicerce, a força propulsora da ação.

Multiplicar é uma luta, e não um método. Portanto, agitação e propaganda, mobilização, panfletagem, reunião, roda de conversa, visita de casa em casa são meios importantes da luta, mas não são o FIM. O FIM é a defesa do SUS. Precisamos ser criativos para criar e recriar meios para “fortalecer as raízes do bambu”, apaixonando-nos pela luta. Para isso, faz-se necessário: a) conhecer o contexto; b) ter o objetivo definido; c) afirmar-se como sujeito da luta pelo SUS; d) construir ou integrar processos; e) estar presente, enraizado na realidade; f) sonhar o sonho SUS.

O “como fazer” deve estar relacionado ao “para que fazer”. Não há um livro de receitas; existem experiências históricas com as quais podemos aprender, existem possibilidades que precisam ser exploradas. Multiplicar é expor-se ao risco e ao erro.

Os princípios da Educação Popular são orientadores da ação do multiplicador, à medida que se constituem como uma práxis libertadora, como um modo de vida. O que significa dizer isso? A Educação Popular parte da realidade dos sujeitos envolvidos, ajudando a fazer uma leitura crítica da situação, para que ela seja transformada, à medida que contribui para que as pessoas se tornem protagonistas da sua história e da história da sociedade. Todos e todas somos capazes de provocar mudanças, de transformar a realidade. Ninguém sabe mais que o outro; cada um tem a sua história de vida, o seu próprio saber e pode ajudar na melhoria do seu bairro, do seu município e do País.

A seguir, um breve enunciado que poderá orientar o esboço de atividades que integrarão o processo de multiplicação de fortalecimento para o SUS.

Preparando um encontro de multiplicação

Vamos listar alguns passos importantes para a preparação de um encontro de multiplicação e de formação permanente no SUS. O roteiro pode ser usado para os encontros de formação provocados pela Comissão de Educação Permanente do Conselho de Saúde ou para preparar encontros de discussões em nosso bairro, na comunidade ou na igreja.

É importante lembrar que a finalidade dos encontros de multiplicação não termina nos debates, mas na provocação e organização de processos políticos, o que significa que os encontros de formação devem ser momentos de união de forças e de lutas pela saúde como direito humano. Estudar e pesquisar o tema também são ações fundamentais, pois precisamos conhecer nossa realidade para modificá-la.

Apresentamos algumas etapas importantes para os organizadores e as lideranças organizarem atividades e processos organizativos.

Mobilização e sensibilização

Para as pessoas participarem, é preciso que sejam convidadas, mas o convite precisa ser construído em conjunto com a comunidade para que seja uma provação para agir, para estimular a vontade de mudar a situação, para que incentive o engajamento na luta. Conversar sobre o convite é uma boa estratégia.

Objetivo

É preciso ter clareza sobre o objetivo da atividade. É necessário pensar que a atividade está relacionada à luta pelo direito à saúde e que o processo não terminará ao final da reunião, mas deverá provocar outros momentos de estudos e de organização. Todo o grupo deve assumir responsabilidades e estratégias de ação.

Temática

Escolher o tema específico do encontro e elaborar uma pauta – discutir a falta de fichas na unidade de saúde local é um exemplo. Definir o tema pressupõe estudar o modelo de assistência defendido pelo SUS e compará-lo com o que está sendo desenvolvido; olhar para o contexto maior sobre o que significa “a falta de fichas na unidade”. Para escolher as temáticas dos encontros, é necessário conhecer e perceber quais são as necessidades e os anseios da comunidade.

Organização e coordenação

Alguém deverá ser responsável pela organização e a coordenação do encontro, que deve proporcionar estudo, discussão e encaminhamentos. Por exemplo, ao escolher “rediscutindo o conceito de saúde”, é preciso pensar a forma como o tema será discutido à luz da Educação Popular. Dinâmicas de grupo, estudo de texto, pronunciamento de convidados, música, relato de casos e teatro são algumas formas de exposição do tema. É preciso delimitar o tempo de apresentação, e este tempo precisa ser coordenado por alguém que saiba respeitar e acolher os interesses de todos os presentes.

Encaminhamentos e amarrações

O encontro precisa provocar ações e compromissos de todos os participantes; são os encaminhamentos e novas ações.

Apresentamos, a seguir, um modelo de roteiro que poderá ajudar na organização do encontro. Lembre-se que é apenas um modelo. É importante conhecer a realidade específica, perceber o que cada contexto exige e como exige.

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