Oficina sobre participação social no SUS impulsionou a criação colaborativa de planos de trabalho sobre participação social em saúde na fronteira entre Brasil e Venezuela
O território no conselho de saúde ou a participação social no território? Para quem conhece a potência de um Sistema Único de Saúde (SUS) universal, equânime e integral tem consciência de que em Pacaraima, município brasileiro na fronteira com a Venezuela, no estado de Roraima, é impossível fiscalizar, acompanhar e monitorar as políticas públicas de saúde sem ouvir as vozes das comunidades indígenas e das pessoas migrantes.
E não foi diferente com a oficina de número 74 do Participa+, projeto de Formação para o Controle Social no SUS. Desenvolvido pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e pelo Centro de Educação e Assessoramento Popular (Ceap) em parceria com a Opas, o projeto que chega a sua 4ª edição tem como objetivo qualificar a atuação de conselheiras e conselheiros de saúde e lideranças de movimentos sociais através da formação, do fortalecimento institucional e da produção de conhecimento.
Com esse propósito, a sala de aula da Escola Municipal de Educação Infantil Professor Raimundo Nonato Leda dos Santos, em Pacaraima, recebeu, nos dias 11 e 12 de julho, gestores, trabalhadores, usuários do SUS e conselheiros de saúde. Durante os dois dias de trabalho, os participantes aprofundaram seus conhecimentos sobre os conceitos de saúde, princípios e organização do SUS, financiamento de saúde, ciclo orçamentário e instrumentos de planejamento do SUS.
Foi pelo olhar de pessoas migrantes e indígenas que os debates foram permeados e marcaram a oficina, como destacou o educador popular do Ceap, Jorge Gimenez. “Essas duas questões aparecem com muita força. Tivemos indígenas e migrantes participando da oficina, e boa parte do debate foi enriquecido por essa diversidade. Isso demonstra a realidade brasileira, que vai além das capitais. Nas regiões do interior, onde realizamos as oficinas de formação, essas questões ficaram muito visíveis e marcantes.”
Para Gimenez, esse debate é fundamental para a luta pelo direito à saúde no Brasil, embasado nos princípios da universalidade, integralidade e equidade: “A natureza do direito à saúde que defendemos permite que discutamos as diferenças internas no Brasil, incluindo os indígenas, e também os estrangeiros. Graças à constituição do SUS, os imigrantes têm os mesmos direitos ao atendimento que os brasileiros, com acesso a serviços médicos.” A oficina do Participa+, em Pacaraima, reforça o compromisso do SUS em promover a inclusão e a equidade, escutando todas as vozes e garantindo o direito à saúde para todos.
De olho no orçamento da Saúde Pública no Brasil e no Mundo
Conhecer a composição e ciclos orçamentários do SUS para saber como incidir sobre a melhoria no financiamento da saúde pública para que atenda as necessidades locais é um dos objetivos da oficina. Nesse sentido, o encontro deu luz ao posicionamento no Brasil quando o assunto é financiamento.
No cenário internacional, o Brasil figura como um dos países que mais gastam com saúde em termos percentuais do PIB. Enquanto Canadá e Reino Unido destinam 10.8% do PIB aos seus sistemas de saúde universal, o Brasil não está muito distante, com 9.6%. No entanto, a disparidade se torna evidente ao analisar a origem desses gastos. No Brasil, apenas 3.9% do PIB são gastos públicos, enquanto 5.7% são gastos privado.
Em contraste, tanto o Canadá quanto o Reino Unido têm gastos públicos significativamente maiores, com 8.4% e 7.5% respectivamente, e menores gastos privados, em torno de 2.3%. Esta diferença acentua a necessidade de reestruturar o financiamento da saúde no Brasil, promovendo um aumento do investimento público e reduzindo a dependência do setor privado. A pergunta crucial é: por que o Brasil gasta de forma a privilegiar o setor privado sobre o público? Esta questão remete à dificuldade de acesso a especialistas e serviços específicos no sistema público, que muitas vezes leva a população a buscar soluções no setor privado, aumentando os custos e diminuindo a eficácia do investimento em saúde.
Em 2019, o Brasil apresentou um gasto per capita com saúde de 1.498 dólares, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Este valor inclui tanto o gasto público quanto o privado. No contexto global, esse montante é significativamente menor quando comparado a países como o Canadá e o Reino Unido, que registraram gastos per capita de 5.521 e 5.087 dólares, respectivamente. Este cenário destaca a necessidade urgente de aumentar o investimento público em saúde para garantir um sistema mais equitativo e eficaz, reduzindo a dependência do setor privado e promovendo um acesso mais amplo e justo aos serviços de saúde.
Ao mesmo tempo que a oficina trouxe conteúdos relevantes sobre etapas e prazos para criar diretrizes que possam incidir no plano de saúde do município, bem como envolver os candidatos a prefeito e a vereador com as pautas da saúde, trouxe para o centro demandas relevantes à realidade local. O papel do conselheiro e sua autonomia para monitorar e fiscalizar estiveram entre as principais reflexões.
Oficina já nasceu como multiplicadora de conhecimento
Sob o olhar atento dos alunos, que trouxeram a realidade para dentro da sala de aula, os planos de trabalho da oficina foram elaborados. A cartilha do Participa+ percorreu os grupos de trabalho da oficina e serviu como instrumento de consulta e fomento. Esse recurso impulsionou a criação colaborativa, refletindo o compromisso com a participação ativa e o aprendizado coletivo. A presidente do Conselho Municipal de Saúde e líder indígena, Diularneide Macuxi, destacou a importância de oficinas participativas para impulsionar ações que buscam melhorar as condições de saúde nos territórios.
“Levei a cartilha para casa e li de uma só vez. Ela nos orienta sobre como a participação social pode impactar diretamente na melhoria da saúde da nossa população. Nesta oficina trabalhamos com equidade, abrangendo toda a população sem distinção, incluindo comunidades ribeirinhas e indígenas. Tanto a cartilha quanto a oficina favorecem o trabalho em equipe e nos preparam para enfrentar um dos maiores desafios: incluir o atendimento de pessoas imigrantes no sistema de saúde e lidar com os indicadores dessa realidade.”
Os planos elaborados começaram a se tornar realidade. Assim que a oficina foi encerrada, a presidenta do conselho municipal, Diularneide Macuxi, e o coordenador da oficina, Jorge Gimenez, visitaram a comunidade indígena Tarau Puru. Situada na Reserva São Marco, em Pacaraima, essa comunidade é uma das poucas que aceitam indígenas imigrantes, como o povo Taurepang-Pemon, que deixou o território venezuelano. Desde então, o número de moradores aumentou de 200 para mais de 900.
Para chegar ao local, que fica muito próximo à fronteira entre os dois países, é necessário ter autorização e passar por uma área militar brasileira. O grupo foi recebido pela tuxaua Maria Deunice Gutierre, a primeira mulher a se tornar líder da comunidade. O convite foi feito por Israel, que participou da oficina juntamente com a esposa e a cunhada. Todos indígenas venezuelanos que se viram forçados a migrarem para o Brasil, por motivos econômicos e políticos. A participação social por meio dos conselhos locais foi o tema central. O representante dos migrantes dentro na comunidade, Leo Davincy Morales Williams, recebeu do grupo um exemplar da cartilha “O SUS e a efetivação do Direito Humano à Saúde”.
A iniciativa de ir à comunidade é resultado do plano elaborado pelo grupo em que Israel Rodriguez fez parte, como atividade de conclusão da oficina do Participa+. O plano criado em sala de aula prevê a realização de rodas de conversa sobre a valorização do SUS como direito humano, com moradores locais, imigrantes, gestores, trabalhadores e gestores. “Faço questão de ser multiplicador do conhecimento que recebi nesta oficina. Este é um compromisso”, destacou Israel.
Da sala de aula à prática: a UBS abriu a portas para a oficina
A Técnica em Enfermagem, Jaciara Costa da Silva, Gerente da Unidade Básica de Saúde Alaíde do Carmo Bruce Fernandes, em Pacaraima, destacou que mais de 90% dos atendimentos realizados são de imigrantes venezuelanos, tanto aqueles que estão de passagem, que seguem para outras regiões do país, quanto os residentes na cidade brasileira.
Por conta do grande fluxo, a UBS mantém uma rotina de atendimento das 7h às meia-noite. Conta com dois médicos de manhã, dois à tarde e um à noite. Alguns deles fazem parte do Programa Mais Médicos. “Nosso público-alvo são imigrantes, indígenas, e a população de rua. Por sermos uma UBS e, portanto, ligada ao SUS, atendemos a todas as pessoas. E a nossa demanda maior aqui é a imigração. Os nossos desafios são gigantes.” ressaltou.
Fluxo na fronteira
Mais de 5 milhões de venezuelanos estão vivendo no exterior, a grande maioria em países da América Latina e do Caribe, esta se tornou uma das maiores crises de deslocamento do mundo. Os dados são do Acnur, Agência da ONU para Refugiados.
Em 2023, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu 77.193 pessoas como refugiadas, sendo que 44,3% das pessoas reconhecidas como refugiadas eram crianças, adolescentes e jovens com até 18 anos de idade.
Do total, 72% das solicitações apreciadas pelo Conare foram registradas nas Unidades da Federação (UFs) que compõem a região norte do Brasil. O estado de Roraima concentrou o maior volume de solicitações de refúgio apreciadas pelo CONARE em 2023 (51,5%), seguido por Amazonas (14,2%) e São Paulo (7,5%).
Cartão do SUS é prioridade
Todos os dias centenas de pessoas continuam cruzando a fronteira com destino ao Brasil. Parte deles para participar da Operação Acolhida, que superou a marca de 125 mil migrantes e refugiados da Venezuela interiorizados pelo Brasil. São pessoas que vivem, atualmente, em 1.026 municípios de todas as regiões do país. Curitiba (PR) e Manaus (AM) são os municípios que somam maior número de beneficiários da ação.
A iniciativa oferece suporte ao deslocamento voluntário, seguro e organizado de populações refugiadas e migrantes, além de buscar novas oportunidades de integração socioeconômica e cultural. O objetivo do Governo Federal na Operação Acolhida é dar uma resposta humanitária às demandas que chegam ao Brasil pela fronteira com a Venezuela.
Ainda na estrutura montada na fronteira, os imigrantes venezuelanos recebem orientação jurídica, informações sobre assistência social além de se cadastrarem no Sistema Único de Saúde e chegaram a receber até sete tipos de vacinas de única vez.
Participa+ formação para o controle social no SUS
Ao longo de 2024 serão realizadas 82 oficinas de formação, em todos os estados brasileiros; 100 rodas de conversa virtuais, abordando diferentes temas; 27 cursos sobre ferramentas virtuais; 27 encontros estaduais sobre práticas de multiplicação; um processo de formação de educadoras e educadores; além de outras atividades que buscam fortalecer o SUS.
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Fonte: Ascom CNS, com Acnur e MDA