Centro de Educação e Assessoramento Profissional

Sumário

Relatório do seminário “Educação Popular e os Desafios da Multiplicação de Processos Formativos”

1. Sobre o seminário

O Seminário “Educação Popular e Multiplicação de Processos Formativos”, realizado em 31/08/21, pela plataforma zoom, é o segundo seminário realizado em 2021 pelo Fórum Nacional de Defesa do Direito Humano e Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP). O Fórum reúne movimentos e entidades com caráter popular. Mantém uma dinâmica e um processo organizativo de rede. Isto é, é um espaço horizontalizado que se propõe fortalecer, formular e promover várias lutas e ações em defesa do DH à Saúde. São promovidas ações de Elaboração / Sistematização de conteúdos, ações formativas (seminários, cursos, rodas de conversas…) e articula ações de incidência nacional e internacional. É um espaço aberto, quem quiser ir se somando neste fórum, desde já, é bem vindo/a.

Figura 1. Imagem dos participantes do seminário online no momento da abertura

Fonte: CEAP – captura de tela do aplicativo Zoom.

O Seminário abaixo, relatado e degravado, objetivou refletir sobre a concepção de multiplicação em processos formativos à luz da educação popular e de como ela se constitui em estratégia de fortalecimento da luta pelo direito humano à saúde no Brasil. Conjuntamente ao seminário, houve o lançamento da versão textual do Relatório do Direito Humano à Saúde – 2020

A problematização da temática central é realizada pelo Educador Popular e Presidente do CEAAL – Conselho de Educação Popular de América Latina e do Caribe – Oscar Jara. O texto da sua apresentação foi degravado, mantendo, principalmente a particularidade de fala do palestrante.

Figura 2. Convite usado na divulgação do seminário

Fonte: CEAP.

A coordenação Geral do Seminário foi realizada por Valdevir Both, coordenador executivo e educador popular do CEAP.

Figura 3. Programação do seminário enviada juntamente com o convite

Fonte: CEAP.

2. Abertura: poesia a Paulo Freire

Neste trecho do vídeo, assiste-se à homenagem feita pela educadora Jussara Cony, por meio de sua composição da prosa poética a Paulo Freire, no marco do centenário de Paulo Freire.

Vídeo 1. Trecho gravado no seminário durante a apresentação da poesia a Paulo Freire de autoria de Jussara Cony

3. Lançamento da versão textual do “Relatório do Direito Humano à Saúde no Brasil 2020”

O Relatório Direito Humano à Saúde 2020 é uma coletânea de várias entrevistas de movimentos sociais, entidades e lideranças que denunciam violações e omissões aos direitos humanos no Brasil em 2020 e anunciam agendas de lutas. Produzido pelo CEAP em parceria com o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos Humanos e apoiado pela Misereor.

Nara Peruzzo, educadora do CEAP e uma das responsáveis pela organização do documento, coordenou o momento de lançamento da versão textual Relatório. Relembrou que esta é a terceira versão que está sendo produzida e que neste ano o Relatório é composto de uma versão textual e de uma versão audiovisual (lançada em junho de 2021).

A versão textual transcreve integralmente as entrevistas realizadas, preservando o “lugar” de fala de cada entrevistado/a. As entrevistas seguiram um roteiro semi-estruturado no qual buscavam apresentar o sujeito e a entidade entrevistada, a caracterização do sujeito de direito representado, os principais problemas de saúde enfrentado no respectivo ano; a forma como o Estado Brasileiro agiu para com esses sujeitos e finaliza com as principais ações e agendas da entidade. No entanto, cada entrevista tem sua particularidade, revelando-se um conteúdo muito rico, diverso, singular, formativo e político. Assista ao vídeo abaixo.

Vídeo 2. Trecho gravado no seminário durante a apresentação da versão textual do Relatório do Direito Humano à Saúde no Brasil 2020 realizado pela educadora Nara Peruzzo

3.1. Sumário do Relatório

Apresentação

Introdução

Parte I

  1. Entrevista com Ladislau Dowbor: direito humano à saúde e economia
  2. Entrevista com Ligia Bahia: direito humano à saúde e política pública de saúde
  3. Entrevista com Fernando Zasso Pigatto: direito humano à saúde e controle social no SUS

Parte II

  1. Entrevista com Vanilson Torres – MNPR: saúde da população em situação de rua
  2. Entrevista com Getúlio Vargas de Moura Júnior – CONAM: saúde da população das comunidades
  3. Entrevista com Madalena Margarida da Silva Teixeira – CUT: saúde do trabalhador e da trabalhadora
  4. Entrevista com Ronald Ferreira dos Santos – CTB: saúde do trabalhador e da trabalhadora
  5. Entrevista com Maria da Conceição Silva – UNEGRO: saúde da população negra
  6. Entrevista com Moysés Longuinho Toniolo da Silva – ANAIDS: saúde das pessoas vivendo com HIV-AIDS
  7. Entrevista com Elionice Conceição Sacramento – MPP: saúde dos povos do campo, águas e floresta
  8. Entrevista com Edjane Rodrigues Silva – CONTAG: saúde dos povos do campo, águas e floresta
  9. Entrevista com Joelson Santos – MST: saúde dos povos do campo, águas e floresta
  10. Entrevista com Lucas Gonçalves – Pastoral Carcerária: saúde da população privada de liberdade
  11. Entrevista com Vitória Davi – UNE: Saúde das Juventudes
  12. Entrevista com Manuelle Matias – ANP: saúde das juventudes
  13. Entrevista com Luiza Batista Pereira – FENATRAD: saúde da mulher
  14. Entrevista com Vanja Andréa Santos – UBM: saúde da mulher
  15. Entrevista com Geraldo Adão Santos – COBAP: saúde das pessoas idosas
  16. Entrevista com Sandro Alex de Oliveira Cezar – CNTSS: saúde do/a trabalhador/a na saúde
  17. Entrevista com Artur Custódio Moreira de Souza – Morhan: saúde das pessoas atingidas pela hanseníase

Sobre as entrevistadas e os entrevistados

Sobre os vídeos da série Relatório Direito Humano à Saúde no Brasil em 2020

3.2 Acesso ao relatório

A versão textual do Relatório do Direito Humano à Saúde no Brasil em 2020 está disponível em nosso site e pode ser acessado pelo link. O documento pode ser lido no site ou baixado sendo permitida sua reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte e que não seja para venda ou qualquer fim comercial

4. Painel “Educação Popular e os desafios da multiplicação de processos formativos”

O texto a seguir é uma transcrição da apresentação feita por Oscar Jara Educador popular e Sociólogo, diretor do CEP Alforja na Costa Rica e Presidente do CEAAL – Conselho de Educação Popular de América Latina e do Caribe.

Agradeço o CEAP pelo convite para dialogar com vocês sobre esse tema tão importante. Diálogo ao mesmo tempo desafiador e também prazeroso.

Tive a oportunidade de acessar previamente os audiovisuais do Relatório do Direito Humano à Saúde no Brasil – 2020, assim como os subsídios pedagógicos usados nas oficinas de Formação para o Controle Social – 2ª edição. Fiquei emocionado com tanto material de qualidade que vocês têm produzido. Muito interessante o processo das entrevistas com os movimentos sociais, os vídeos e o processo de formação que estão desenvolvendo.

Quero dialogar com vocês sobre o tema proposto, a partir de algumas das nossas experiencias de formação, especialmente na América Central. Falo de minha experiência na construção da rede de educação popular Alforja, na América Central e México, em que tivemos essa mesma preocupação com a formação multiplicadora.

Nossa rede nasceu no ano de 1980, a partir do nosso engajamento nos processos formativos na revolução popular sandinista na Nicarágua: começamos a trabalhar na ideia de gerar processos de formação e o tema principal da multiplicação apareceu desde o início, com as demandas que chegavam para nós, em que se dizia: acabamos de fazer uma revolução, mas precisamos que as pessoas participem ativamente no processo. Como fazemos para que, com processos de educação popular, as pessoas participem conscientemente na construção do processo da revolução?

Então começamos a fazer oficinas e fomos aprendendo a partir de engajamentos solidários. Tínhamos pessoas de distintos países que chegavam em Nicarágua a colaborar. Nicarágua era como uma panela fervendo, onde todas nossas propostas e saberes se fusionaram. Isso nos permitiu inventar, criar, imaginar uma proposta metodológica integral e, a partir desse processo, fomos refletindo sobre ele e sistematizando. Criamos, anualmente, uma oficina regional de sistematização de experiência, para recolher criticamente aquilo que estávamos fazendo na Nicarágua e que tentamos também reproduzir para quando retornávamos para os nossos países: Costa Rica, México, Panamá, Honduras etc. Mas como esses países não eram Nicarágua, que estava em um processo de revolução, tínhamos que repensar, reimaginar, recriar como fazer, esses aprendizados coletivos, em outros países e outros contextos. E a partir de lá também fazer uma reflexão desde essas diversidades em outros países e que tinham em comum serem propostas de educação popular. Assim, fomos nos aprofundando no fundamento teórico, epistemológico e metodológico da educação popular. A partir disso, então, surgiram muitas dessas ideias que hoje compartilho com vocês nesse momento.

Inicio o compartilhamento da apresentação “Educação Popular e os desafios da multiplicação de processos formativos”, preparada para contribuir no nosso diálogo.

Figura 4. Captura da tela compartilhada por Oscar Jara no início de sua apresentação

Fonte: CEAP – captura de tela do aplicativo Zoom.

Penso que o título, como acontecia muito com Paulo Freire quando ele falava em conferências, nos faz refletir sobre essa relação do que é a educação popular e quais são os desafios para a multiplicação, uma vez que estamos falando de processos formativos e não apenas de eventos educativos.

Então, a pergunta geradora é: quais são os principais desafios para a multiplicação dos processos formativos? Relaciona-se tanto com o nível pessoal daqueles que participam dos processos formativos, quanto com nível grupal e também com processo massivo, porque pretendemos desenvolver um projeto que atinja a sociedade inteira. Esses desafios não são somente problemas, dificuldades, não, aparecem como desafios do momento histórico e questionam nossas concepções e formas de trabalho.

Cito um exemplo freireano para iniciarmos nossa discussão, que coincide com a apresentação do Relatório Direito Humano à Saúde – 2020. As pessoas que conheceram Paulo Freire sabem que ele gostava muito de falar da comida, da cozinha, da comida nordestina. Lembro muito quando estivemos, no ano de 1986, no Instituto Cajamar. Ele quase sempre, na hora do jantar, falava da comida nordestina e do jeito de cozinhar etc. Por isso, citarei o exemplo usado por Paulo Freire, que diz o seguinte:

O ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equilibrar para mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente. A prática de cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando outros, e vai possibilitando que ele vire cozinheiro […] A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blablablá e a prática, ativismo (Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa).

Neste exemplo, Paulo Freire vai dizer que a reflexão crítica sobre prática se torna uma exigência da relação teoria-prática, sem a qual a teoria poderia virar blá blá blá, e a prática, ativismo. Temos nesse exemplo um tema gerador e podemos pensar: o que tem a ver esse ato de cozinhar, o qual pressupõe saberes concernentes a fogão, a riscos de coisas que podem acontecer, harmonização de temperos para criar sínteses gostosas e essa prática que vai ratificando e modificando os saberes do ato de cozinhar a partir da reflexão crítica, com o processo de multiplicação formativa?

A partir desse exemplo de Freire, podemos dizer que o ato de cozinhar está nos falando que o processo de formação é efetivamente isso: é um processo, não é um evento, ou só um conjunto, uma somatória de atividades, mas é um processo que deve ter uma sequência, uma lógica, uma continuidade, um trajeto…

Quando ele fala do uso do fogão, ele fala desse processo de saberes: saberes técnicos, científicos, da própria prática, o “saber da experiência feito” (como ele escreve na própria Pedagogia da Autonomia), que formam parte dessa troca de saberes. E quando fala de lidar com risco, mesmo remoto, com a possibilidade de incêndio, significa que esse processo supõe imaginação, olhar para o futuro e as possibilidades que podem acontecer. Quando ele fala de harmonizar os temperos para criar uma síntese gostosa, quer dizer que esse processo inclui sensibilidade, paixão, criatividade. Sem esses elementos, aparentemente não é possível passarmos de novatos a cozinheiros, porque é a prática de cozinhar e é a reflexão crítica dessa prática que vai criando o processo de formação, que vai transformando-nos de “novatos” a “cozinheiros”. Concluo novamente com essa frase: A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação teoria-prática. Uma exigência sem a qual a teoria virá um blá blá blá e a prática ativismo. Portanto, não acontece nenhum processo e nem propriamente formação. Isso coloca a reflexão crítica sobre a prática como um fator fundamental para a formação.

4.1. Reflexões sobre o vínculo da educação popular e a democracia

4.1.1. Educação Popular

Sempre quando falamos de educação popular não podemos falar de “a educação popular” como se fosse uma coisa única, homogênea, senão de processos múltiplos e diversos que acontecem em diversos lugares, de diversas maneiras e, por conseguinte, com diversos jeitos de fazer. É uma concepção comum, mas o processo de educação popular não tem uma forma única, não pode ser homogêneo e unificar-se de uma maneira que se possa dizer: sim, dessa forma se faz a “verdadeira” e “única” educação popular. Há muitas formas de fazer, a depender do contexto, do tema, do conteúdo, do objetivo etc.

4.1.2. O que é popular?

Mas, o que é o “Popular” nesse contexto? Ultimamente, temos feito uma discussão interessante para entender como foi que surgiu o conceito, a categoria de educação popular e porque chamá-la de popular. Temos observado que podemos falar da educação popular em três sentidos: a) O Popular, falando do povo num sentido muito mais amplo e abrangente: todas as pessoas, a gente de um país, de uma região… Assim, uma educação popular é uma educação à qual todas as pessoas devem ter direito. O direito do povo à educação é o primeiro reclamo democrático, nesse sentido, abrangente.

Mas também vamos pegar essa ideia de Helio Gallardo, que é um sociílogo chileno, que mora na Costa Rica, que fala de outros dois sentidos do popular: b) o popular social e o popular político. Ele disse: “O popular social tem a ver com todos aqueles setores sociais que sofrem algum nível de assimetria, seja por exploração econômica, por dominação política, por opressão, por discriminação, por exclusão, por marginação…”. Todos aqueles setores que sofrem algum nível de assimetria forma parte deste povo, povão, em termos de setores populares. Esse é o povo social. Pelo tanto, uma educação popular, nesse sentido, teria que ter por prioridade atingir as necessidades desse povo social que seriam os principais atores e participantes protagônicos.

Mas ele disse: “Uma educação popular no sentido de povo político refere-se a todos aqueles setores, esforços, entidades, pessoas, organizações, que procuram mudar, cancelar essas assimetrias e transformar democraticamente as relações econômicas, sociais, politicas e culturais”. Ou seja, eliminar esses elementos de exploração, de opressão, de discriminação, de exclusão. Então, é uma educação popular em termos de educação, visando a um projeto de sociedade que cria equidade, justiça, relações de solidariedade.

Porém, na verdade, quando falamos em Educação popular, não falamos de uma categoria única ou homogênea, de uma forma de fazer… temos que pensar que falamos de processos muito diversos, que podem ter modalidades formais, não formais ou informais de educação. São processos que devem atingir toda apopulação, que deve ter prioridade para aqueles setores sociais mais vulnerabilizados, excluídos, discriminados, mas que têm a ver com um projeto e um processo político de transformação para criar precisamente um modelo de sociedade que represente os interesses desses setores populares.

Então, essas três ideias nos falam de um elemento central quando falamos da educação popular e de seu vínculo com a democracia: não temos possibilidades de desenvolver uma educação verdadeiramente popular, se não fizermos uma construção de relações democráticas. Essas relações democráticas de poder passam por exercer uma pedagogia democrática, dialógica, democratizadora… processos políticos e pedagógicos na mesma vez.

4.1.3. Uma pedagogia libertadora e dialógica

Quer dizer, no sentido de Paulo Freire, libertadora de tudo aquilo que está nos oprimindo, que nos estão limitando de ser, mas também libertadora de nossas capacidades, nossas potencialidades. E esse é um processo que só se faz dialogicamente. Não é um processo que cada um pode fazer sozinho e que cada um pode fazer impondo ao outro. É um processo que, dialogicamente, vai construindo em nós a capacidade de libertação daquilo que nos oprime e daquilo que temos condições de criar como capacidades novas. Por isso, para Paulo Freire, especialmente, na Pedagogia da Autonomia, mas também na Pedagogia do Oprimido, é muito clara essa definição, assim como que todos nossos processos de educação são partes de processos históricos.

4.1.4. História como possibilidade

Para Freire, os processos históricos não são predeterminados, são sempre uma possibilidade de criação. A história não é inexorável, mas temos que construir aquela história que a gente quer. E, para isso, precisamos dos sujeitos que vão construir essa história. Esse é o lugar, especificamente, de contribuição dos processos de educação popular: o engajamento nas condições específicas da história e dessas possibilidades, capacidades e potencialidades dos sujeitos transformadores que vão criar a história que se quer que aconteça através de processos de uma pedagogia libertadora dialógica que atinja todos as pessoas, que prioriza os setores dos povos mais oprimidos e marginalizados, mas que tem sentido político de ser um processo popular de transformação.

4.1.5. Desenvolvimento de capacidades transformadoras nas pessoas e nos coletivos

Ideia central desses processos pedagógicos. Quer dizer que temos que ter maior sensibilidade, maior capacidade de olhar mais longe, possibilidade de nos articular com outros esforços, capacidade de escutar, capacidade de humildade de aprender daquilo que acontece, capacidade de nos comunicar, de agir, de imaginar, de sonhar e continuar procurando coerência com esse sonho que está colocado para nós. Capacidade de gerar utopias a partir das realidades que a gente vive, capacidade de analisar criticamente não só os efeitos senão de compreender as causas etc.

Esse desenvolvimento de capacidade transformadora é aquele que torna possível que nós sejamos sujeitos transformadores da história e, portanto, se fazem através de relações democráticas, que são aquelas relações em que vamos desenvolvendo um poder capaz de transformar, mas também em que vamos desenvolvendo poderes sinérgicos, em que os poderes vão se alimentando e construindo em conjunto e não são poderes autoritários que se impõem um sobre o outro. A ideia de um processo de construção democrática vai sempre acompanhada de um processo de educação popular.

4.1.6. Vínculo entre os processos educativos

Trata-se de um vínculo fundamental entre os processos educativos que organizamos de distintas maneiras e os processos de organização e participação, para que essa participação seja consciente e crítica de tal maneira, que não existe processo de educação popular que não se expresse numa dinamização dos processos organizativos, que não se expresse numa participação crítica e consciente das pessoas e dos processos. Consequentemente, isso é o que define que o processo de educação seja popular ou não. Não adianta fazer processos de educação isolados dos processos organizativos, isolados das ações de participação.

4.1.7. Vínculo com as políticas públicas

Particularmente, aqui, com a política pública de saúde. Esse processo tão interessante das conferências, dos conselhos, dos conselheiros que o procuram e que as pessoas das comunidades urbanas, rurais, indígenas, mulheres, jovens, idosos, possam participar na execução das políticas púbicas, na fiscalização e no controle das políticas públicas e atingir os objetivos democráticos, democratizadores – que têm que ter as políticas públicas.

Falamos há algum tempo com Gilberto Carvalho, quando ele estava na Secretaria Geral da Presidência, precisamente sobre o conceito de política pública. Uma política pública não é só uma política governamental; a política governamental faz parte de uma política pública. Para que a política governamental seja política pública exige que tenha participação social, controle social. Que seja criada pelas pessoas para virar uma política pública e não só uma política governamental. Deste modo, esse processo vai implicar um processo de educação popular para a participação nas políticas públicas. Esse processo que vocês estão fazendo, esse processo de educação e formação vinculado às políticas de saúde que vão construindo essas políticas de saúde, são processos fundamentais para que essas políticas virem efetivamente políticas públicas. Que não sejam, pois, políticas declarativas ou que sejam políticas simplesmente que existem em um tempo com um outro nome; são políticas em andamento, em criação permanente, em modificação.

No ano de 2014, tive o privilégio de estar no Brasil, convidado pela Secretaria Geral da Presidência, precisamente por Gilberto Carvalho, Selvino Heck, Pedro Pontual e Paulo Maldos, que estavam na Secretaria de Participação Social da Presidência, e se criou uma política de participação social que incluía um marco referencial para a educação popular nas políticas públicas. Definiu-se que toda a política pública teria que ter um componente de educação popular que acompanhasse essa política para que ela virasse uma política democratizadora. Já conhecemos o que aconteceu depois de 2014, assim como o golpe de 2016. Mas todo esse processo de definição, de uma estratégia de participação social como um elemento constitutivo central das políticas públicas no Brasil é um exemplo que esperamos seja possível algum dia e também seja divulgado ao âmbito de América Latina e de outros países, porque acho que é uma das experiências mais interessantes, ricas e poderosas do que significa a construção da democracia social, democracia política, democracia cultural e o vínculo da educação popular com essa construção democrática e não apenas com a formalidade democrática das eleições.

Essa ideia de processos de educação popular que vão desenvolvendo nossas capacidades de sermos sujeitos da história e desenvolvimento das capacidades transformadoras, vinculada com os processos organizativos e políticas publicas, é o grande desafio de quando falamos de educação multiplicadora, que possui desafios atuais.

4.2. Desafios da educação multiplicadora

Apresento alguns desafios a partir da nossa experiência, sobre os quais pretendo dialogar com vocês: Na nossa experiência, um dos primeiros desafios foi a definição de ter uma estratégia integral de formação multiplicadora. Quer dizer, não é somente a ideia de uma somatória de atividades, mas ter uma perspectiva estratégica que vai propor uma mudança radical da situação do ponto de partida. Uma estratégia, um plano estratégico significa que o objetivo desse plano vai ser chegar a mudar radicalmente o ponto de partida de quando criamos a estratégia. Senão é um plano de ação, de atividades. Mas para ser um plano de estratégia integral, tem que olhar uma transformação radical. E por isso esta estratégia deve ser ética, política, pedagógica e estética. e não adianta ter simplesmente uma estratégia de ação educativa através do uso de alguns materiais ou ferramentas.

Numa estratégia que tem base ética, política, pedagógica e estética se deduz uma metodologia que articula esses elementos a partir das diversas realidades. Essa metodologia, por sua vez, utiliza ferramentas, procedimentos de ação. Então, o tema da metodologia de formação multiplicadora não é simplesmente “metodológica” nem tem a ver só com as ferramentas ou técnicas a utilizar; é metodológico na medida em que expressa ser parte de uma estratégia integral, ética, política, pedagógica e estética e que supõe uma apropriação criativa, por parte dos sujeitos, dos conteúdos e dos métodos para a multiplicação, não simplesmente a aprendizagem e a utilização deles.

A partir de algumas experiências realizadas, podemos dizer que uma estratégia de formação prática-teórica-prática tem, de um lado, um ponto de partida, chamado de “tempo comunidade”, na qual expressa todas aquelas vivências e experiências do sujeito, ou seja, nossa prática. Essas experiências estão no ponto de partida. Nesse sentido, nossas práticas devem servir para fazer uma reflexão, uma teorização da prática, momento que podemos chamar de “tempo oficina”, pensando não somente em palestras, mas como oficinas de reflexão e criação e que voltam para o “tempo comunidade”, como um retorno transformador à prática precisamente na medida em que dialoga com a teoria com a prática. Portanto, a pergunta é: A “formação”, a apropriação de conteúdos e de métodos se dá somente no tempo oficina? Acreditamos que não. A apropriação de conteúdos e de métodos se dá precisamente na medida em que tem a lógica, coerência, a continuidade com esse ponto de partida, com esse processo de reflexão e teorização vinculado com essa prática e orientado a um retorno à prática. Portanto, o processo de multiplicação, que é alimentado pelo tempo oficina, tem o peso principal nos “tempos comunidade”: são nos tempos comunidade onde se define o sentido do tempo oficina (ver gráfico a seguir).

Figura 5. Estratégia de formação prática-teoria-prática

Fonte: apresentação compartilhada no seminário por Oscar Jara.

Muitas vezes, pensamos que uma estratégia ou um plano de formação multiplicadora é fazer uma oficina e outra e outra… como se a lógica fosse passar de oficina em oficina e, talvez, às vezes, deixamos de lado a ideia de que as oficinas estão em função daquilo que aconteceu antes da oficina e aquilo que vai acontecer depois da oficina. Dessa forma, o primeiro grande desafio é esta ideia de ter uma estratégia em que os tempos de comunidade sejam os tempos principais.

O terceiro desafio é como organizar a sequência de conteúdos. Aqui aparece a metodologia. A metodologia significa essa organização dessa sequência em que vamos pegar a relação entre a vivência e a prática como ponto de partida e ponto de chegada. Onde temos que articular os conhecimentos existentes com as novas informações, sendo importante, como dizia Freire: “passar do saber de experiência feito a pensar certo”. Um processo que tenha essa articulação, esse diálogo de saberes entre os meus próprios saberes e conhecimentos. Poder passar a partir desses meus conhecimentos existentes com novas informações a construir novos conteúdos, conhecimentos. E um momento em que, na sequência, deve haver um exercício de métodos, técnicas e procedimentos. Não é simplesmente uma sequência abstrata de conteúdos, é uma sequência de como trabalhar esses conteúdos através de uma sequência e, por isso, o elemento-chave vinculado com a prática, igualmente com os elementos mais simples aos mais complexos.

Figura 6. Organização metodológica da sequência de conteúdos teórico-práticos: processo dialógico

Fonte: apresentação compartilhada no seminário por Oscar Jara.

A organização metodológica da sequência de conteúdos teórico-práticos significa um processo dialógico porque partimos do tempo comunidade, das vivências, dos saberes, das situações e das pessoas que vão participar das oficinas e que vão trazer essas vivências, esses saberes, essas situações com os conteúdos sobre os quais vamos dialogar, refletir nessa oficina de tal maneira que essa oficina vai traga novas informações que vão se articular com esses conhecimentos que já temos quando chegamos nessas oficinas. Assim, teremos um processo de engajamento que deve ser vinculado com novos trabalhos, novos tempos de comunidade que já não serão iguais àqueles em que chegamos antes; vamos mudar, porque serão novas práticas.

Isso significa que serão processos de aprendizagem, incluirão processos de reflexão crítica, mudanças com relação ao tempo de comunidade anterior e transformações em termos dos processos que vão se criando de tal forma que vamos chegar a uma outra oficina.

Devemos, então, recolher aquilo que aconteceu nesse segundo tempo de comunidade de tal forma que vamos aprofundar, vamos fazer uma reflexão crítica sobre aquilo que aconteceu com aquilo que fizemos depois, e assim vai em sequência. Então é um processo, que dentro da nossa experiência de América Central, nos permitiu criar processos, por exemplo – para todo ano –, de quatro ou cinco oficinas, a cada dois meses, que incluía o tempo comunidade como o tempo central de sequência de tal maneira, que as oficinas eram momentos para partilhar, refletir sobre aquilo que tinha acontecido dentro dos nossos processos em comunidade.

A pergunta: Quem são os sujeitos principais de uma estratégia multiplicadora? Num primeiro momento, pensamos que eram as pessoas que chegavam em nossas oficinas de formação, pois eles seriam aqueles a formar outros. Depois refletimos, que os sujeitos principais não são eles, eles são sujeitos definitivamente, mas os principais são as pessoas das comunidades, dos setores, dos movimentos, das organizações com quem eles trabalham. Portanto, se eu for fazer uma oficina de formação multiplicadora, não estou pensando só naquelas pessoas que irão chegar nas oficinas, mas estou pensando, principalmente, naquelas pessoas, grupos, comunidades com quem eles vão trabalhar.

São essas situações, essas vivências, essas problemáticas, que devem estar presentes dentro de nossas atividades formativas, de tal forma que, nesse processo de construção democrático e democratizador, as pessoas do povo, as pessoas do bairro, as pessoas das comunidades camponesas, as mulheres, os jovens, as lideranças, possam passar de serem beneficiários de processos de formação de política, para passarem a ser protagonistas, sujeitos ativos e propositivos.

Finalmente, o último ponto, as diferenças entre aquilo que planejamos e a realidade que efetivamente se deu. Portanto, temos uma grande necessidade de fazer uma reflexão crítica sobre essa realidade, não só acerca daquilo que tínhamos planejado, e por isso aparece como essencial a sistematização de nossas experiências. Poder fazer uma reflexão crítica sobre, desde, para as práticas e sua transformação.

Isso significa precisamente construir e descobrir aqueles inéditos viáveis que estão surgindo nas nossas experiências e que precisamos identificar, explicitar, recolher e converter em aprendizagens para poder transformar. Se não fizermos uma reflexão crítica, podemos fazer muita coisa, muito ativismo, ou fazer muitos discursos e fazer muito teoricismo. Entre esses dois elementos, o processo de desenvolver uma estratégia coerente de formação multiplicadora vai implicar um componente de reflexão crítica permanente, que é aquilo que nos vai permitir descobrir, construir os inéditos viáveis para transformação da história.

Por isso, companheiros e companheiras, nesse momento histórico, definitivamente, diante das situações-limite que temos, vamos multiplicar, mas não vamos multiplicar só conhecimentos, ideias, vamos multiplicar atitudes, disposições, desafio de esperançar, de construir cada dia os inéditos viáveis para transformar o futuro. Isso é o grande desafio multiplicador: multiplicar a esperança diante, precisamente, dessa matriz cultural dominadora capitalista colonial, racista e misógina, machista, patriarcal, individualista, centrada no mercado, multiplicar uma possibilidade de uma sociedade de relações solidárias críticas, respeitosas da diversidade.

Paulo Freire vive e nos fala desde aquilo que fizemos e queremos em cada dia!

5. Debate

Na sequência o seminário prosseguiu com o debate entre os/as participantes a partir das questões trazidas Oscar Jara. Optamos por não transcrever os mesmos para preservar o momento específico do seminário.

6. Encerramento

Valdevir Both, coordenador executivo do CEAP, após encaminhamentos e pactuações agradeceu a presença de todos/as no seminário e encerrou o mesmo.

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