Centro de Educação e Assessoramento Profissional

Sumário

Relatório do Seminário “O Direito à Saúde no Contexto da Covid-19”

O Seminário “Direito à Saúde no Contexto da Covid-19”, realizado em 02/06/21, pela plataforma zoom, é uma atividade promovida no âmbito do Fórum Nacional de Defesa do Direito Humano à Saúde pelo CEAP – Centro de Educação e Assessoramento Popular. O Fórum reúne movimentos e entidades com caráter popular. Mantém uma dinâmica e um processo organizativo de rede. Isto é, é um espaço horizontalizado que se propõe fortalecer, formular e promover várias lutas e ações em defesa do DH à Saúde. São promovidas ações de Elaboração / Sistematização de conteúdos, ações formativas (seminários, cursos, rodas de conversas…) e articula ações de incidência nacional e internacional. É um espaço aberto, quem quiser ir se somando neste fórum, desde já, é bem vindo/a.

O Seminário abaixo, relatado e degravado, objetivou analisar a conjuntura da saúde no Brasil e no Mundo no contexto da pandemia da covid-19 e construir estratégias e lutas em prol da afirmação do SUS. Somando-se a isso, houve o lançamento do Relatório do Direito Humano à Saúde – 2020 – versão audiovisual.

A problematização da temática central é realizada pelo Professor (aposentado) João Arriscado Nunes da Universidade de Coimbra e pesquisador do Centro de Estudos Sociais (CES). O texto da sua apresentação foi degravado, mantendo, principalmente a particularidade de fala do palestrante.

A coordenação Geral do Seminário foi realizada por Valdevir Both, coordenador executivo e educador popular do CEAP – Centro de Educação e Assessoramento Popular.

Figura 1. Imagem dos participantes do seminário online durante a abertura

Fonte: CEAP – captura de tela do aplicativo Zoom

Figura 2. Convite utilizado na divulgação do seminário

Fonte: CEAP

1. Boas-vindas da Diretora Geral do CEAP, Elenice Pastore

No vídeo, Elenice Pastore, Diretora Geral do CEAP, saúda todos/as os/as participantes. Ressalta a importância do seminário, bem como, o lançamento de mais uma edição do relatório Direito Humano à Saúde, produzido anualmente desde 2018 em parceria com o Fórum. Agradece a parceria com o CES/Coimbra, do CNS, da CIEPCSS e de todos os movimentos sociais populares que constroem e fortalecem conosco este espaço do Fórum Nacional de Defesa do Direito Humano à Saúde. Chama a atenção para as constantes violações de direitos sofridos cotidianamente no Brasil e no mundo, em especial, no contexto da pandemia covid-19. Finaliza, fazendo a menção ao centenário do Paulo Freire e que este inspire a luta pelo direito à saúde e a vida.

Vídeo 1. Fala de abertura do seminário da diretora geral do CEAP Elenice Pastore

2. Lançamento da versão audiovisual do “Relatório do Direito Humano à Saúde no Brasil 2020”

O Relatório Direito Humano à Saúde 2020 é uma coletânea de várias entrevistas de movimentos sociais, entidades e lideranças que denunciam violações e omissões aos direitos humanos no Brasil em 2020 e anunciam agendas de lutas. Produzido pelo CEAP em parceria com o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos Humanos e apoiado pela Misereor.

Nara Peruzzo, educadora do CEAP e uma das responsáveis pela organização do documento, coordenou o momento de lançamento do Relatório. Relembrou que esta é a terceira versão que está sendo produzida e que neste ano o Relatório é composto de uma versão textual e de uma versão audiovisual.

Figura 3. Capa do relatório do direito humano à saúde no Brasil 2020

Fonte: CEAP

Iniciou sua apresentação, retomando a discussão realizada, em 2019, sobre o porquê de produzir anualmente um relatório sobre o direito humano à saúde no Brasil. Apresentando os seguintes objetivos:

  • Sistematizar permanentemente informações e produzir conhecimentos que contribuam na luta em defesa do SUS e da saúde como direito humano;
  • Dar visibilidade às iniciativas de ação e luta em prol da defesa e promoção do DH à Saúde;
  • Ser instrumento de anúncio da importância da democracia, do controle social, da organização social popular e da luta pelo direito à saúde;
  • Denunciar as violações do direito humano à saúde no Brasil, no contexto da pandemia.
  • A metodologia para elaboração do relatório deu-se a partir das seguintes fases:

1ª Fase – Estruturação e organização: Discussão e Aprovação do Termo de Referência ocorrida no Seminário do Fórum, realizado em novembro de 2020.

2ª Fase – Levantamento de informações: Elaboração de roteiro semiestruturado das entrevistas; Realização de 20 entrevistas – sendo três para a primeira parte e 17 para a segunda parte; Entrevistas para os cases.

3ª Fase – Finalização: elaboração roteiro e gravação dos audiovisuais; degravação de todas as entrevistas para a versão textual; revisão dos textos; editoração e finalização do relatório

4ª Fase – Publicização: divulgar o relatório.

Como mencionado acima, nesta edição foram produzidos cinco audiovisuais, resultado das 20 entrevistas realizadas e incorporados cases que dialogam com situações cotidianas do controle social, profissional de saúde, mulher chefe de família, pessoas atingindas pelo COVID no ano de 2020. Os cinco audiovisuais são:

2.1. Documentário Pandemia e Crise Social

Nesse documentário, a pandemia é vista no contexto social e econômico, cuja marca principal é a desigualdade. Ficam registrados o aumento da violência, a precarização do trabalho e a crise na assistência social durante a pandemia. A partir do testemunho documentado, o vídeo relata situações e traz temas como o trabalho infantil e escravo, e conclui com a afirmação da liderança popular vencedora pela consciência e luta.

“A economia não são leis, são regras do jogo, que a humanidade escolhe.”

Ladislau Dowbor – Economista

Vídeo 2. Documentário em vídeo integrante do relatório do direito humano à saúde no Brasil 2020 tratando da pandemia e a crise social

2.2. Documentário Saúde é Vida

O documentário procura dar visibilidade, por meio do testemunho de vida de quem enfrenta a pandemia, aos profissionais que trabalham no atendimento à saúde da população e que foram negligenciados no período. Esse vídeo traz reflexões sobre a abrangência da saúde e as formas como a pandemia afetou a todos, causando sofrimentos, agravando outras doenças e vitimando os segmentos mais vulneráveis.

“É muito triste você ver uma pessoa morrer trabalhando por outras pessoas.”

Amanda da Silva Araújo – Assistente Social

Vídeo 3. Documentário em vídeo chamado Saúde é Vida e integrante do relatório do direito humano à saúde no Brasil 2020

2.3. Documentário Democracia e Saúde

Esse vídeo enfatiza o papel do controle social e da democracia no SUS, contextualizando o enfrentamento à pandemia. O ponto de vista lançado ao controle e participação social é a partir do usuário do sistema. Também são trazidos e resgatados temas centrais, como as relações entre universalidade e processo democrático e a afirmação histórica da saúde como direito humano. O relatório aponta a falta de coordenação e de políticas públicas, abandono e até boicote, por parte do Governo Federal, cujas consequências são a morte e o sofrimento da população.

“Democracia sem direitos sociais não existe.”

Fernando Pigatto – Presidente do Conselho Nacional de Saúde

Vídeo 4. Documentário em vídeo integrante do relatório do direito humano à saúde no Brasil 2020 sobre Democracia e Saúde

2.4. Documentário Defesa do SUS

Esse vídeo, entre outros assuntos, trata sobre a defesa da ciência e do SUS, com importância, principalmente, para a população pobre e negra. Assim, saúde tem relação com a proteção à vida. A narrativa aborda as condições sociais, o contexto e o processo econômico, explicando, em linhas gerais, as teses do estado mínimo em contrapartida ao estado de bem-estar social. Ficam explicitados diferentes modos como a pandemia afetou a vida das pessoas.

“O SUS é fundamental para a população negra, defender o SUS é ser contra o racismo.”

Maria da Conceição Silva – UNEGRO

Vídeo 5. Documentário em vídeo chamado Defesa do SUS e integrante do relatório do direito humano à saúde no Brasil 2020

2.5. Documentário Resistência, Solidariedade e Futuro

Este vídeo registra a pandemia provocando a solidariedade e a luta pela vida e pelo futuro. A partir do relato de vida, registra uma família de trabalhadores e como foram afetados pela pandemia. A ausência de condições de distanciamento, dada a falta de renda para a sobrevivência, é um dos pontos levantados. Os entrevistados enfatizam a necessidade de ação e trabalho pela saúde, de seguir cuidados, da defesa das vacinas e da participação política.

“O Governo Bolsonaro imobilizou o SUS.”

Ligia Bahia – Doutora em Saúde Pública

Vídeo 6. Documentário em vídeo chamado Resistência, Solidariedade e Futuro integrante do relatório do direito humano à saúde no Brasil 2020

Após a apresentação dos audiovisuais, que são objetos deste lançamento, Nara Peruzzo, contextualiza o estágio da versão textual do Relatório. Informa que a mesma transcreverá integralmente as entrevistas realizadas, preservando o “lugar” de fala de cada entrevistado/a. As entrevistas seguiram um roteiro semi-estruturado no qual buscavam apresentar o sujeito e a entidade entrevistada, a caracterização do sujeito de direito representado, os principais problemas de saúde enfrentado no respectivo ano; a forma como o Estado Brasileiro agiu para com esses sujeitos e finaliza com as principais ações e agendas da entidade. No entanto, cada entrevista tem sua particularidade, revelando-se um conteúdo muito rico, diverso, singular, formativo e político. Socializa com os presentes o sumário da versão textual, o qual segue:

2.6. Sumário do Relatório

Apresentação

Introdução

1 – Entrevista Ladislau Dowbor: Direito Humano à Saúde e Economia

2 – Entrevista Ligia Bahia: Direito Humano à Saúde e Política Pública de Saúde

3 – Entrevista com Fernando Zasso Pigatto: Direito Humano à Saúde e Controle Social no SUS

4 – Entrevista com Vanilson Torres: MNPR: Saúde da população em Situação de Rua

5 – Entrevista com Getúlio Vargas de Moura Júnior: CONAM: Saúde da população das comunidades

6 – Entrevista com Madalena Margarida da Silva Teixeira: CUT: Saúde do trabalhador e da trabalhadora

7 – Entrevista com Maria da Conceição Silva: UNEGRO: Saúde da população negra

8 – Entrevista com Moysés Longuinho Toniolo da Silva: ANAIDS – Saúde das pessoas vivendo com HIV-AIDS

9 – Entrevista com Elionice Conceição Sacramento: MPP: Saúde dos povos do campo, águas e floresta

10 – Entrevista com Ronald Ferreira dos Santos: CTB – Saúde do trabalhador e da trabalhadora

11 – Entrevista com Edjane Rodrigues Silva: CONTAG: Saúde dos povos do campo, águas e floresta

12 – Entrevista com Lucas Gonçalves: Pastoral Carcerária – Saúde da população privada de liberdade

13 – Entrevista com Vitória Davi: UNE: Saúde das Juventudes

14 – Entrevista com Luiza Batista Pereira: FENATRAD: Saúde da Mulher

15 – Entrevista com Geraldo Adão Santos: COBAP – Saúde das Pessoas Idosas

16 – Entrevista com Manuelle Matias: ANP: Saúde das juventudes

17 – Entrevista com Joelson Santos: MST: Saúde dos povos do campo, águas e floresta

18 – Entrevista com Sandro Alex de Oliveira Cezar CNTSS – Saúde do/a trabalhador/a na saúde

2.7. Depoimento de participantes do Relatório

Antes de finalizar o lançamento, foi convidado dois entrevistados e uma entrevistada para falar sobre sua experiência em participar do processo de construção do Relatório e também sobre qual a importância do mesmo para suas entidades e movimentos. Abaixo seguem os depoimentos:

Vídeo 7. Depoimento de Fernando Pigatto – Presidente do Conselho Nacional de Saúde

Vídeo 8. Depoimento de Joelson Santos – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)

Vídeo 9. Depoimento de Luiza Batista Pereira – Fenatrad

3. Painel “O Direito à Saúde no Contexto da Covid-19”

O texto a seguir é uma transcrição da apresentação feita por João Arriscado Nunes que é Sociólogo, Pesquisador do Centro de Estudos Sociais (CES) e Professor Catedrático (aposentado) de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, cocoordenador do Programa de Doutoramento “Governação, Conhecimento e Inovação”, integrante de diversos núcleos de pesquisa espalhados pelo mundo. Suas experiências se concentram em áreas de estudos de ciência e de tecnologia, investigação biomédica, ciências da vida e da saúde pública, da sociologia política, Direitos Humanos e teoria social e cultural.

Agradeço o convite para participar deste seminário sobre o Direito Humano à Saúde e a Covid-19, conjuntamente com o Lançamento do Relatório Do Direito Humano à Saúde no Brasil 2020.

O Relatório assume um formato e uma forma extremamente importantes, pois tem como centro o testemunho das pessoas que estão à frente da luta pelo direito humano à saúde, a partir de diferentes lugares, territórios, formas de enfrentamento da injustiça, das violências que estão na origem e afetam as relações violentadoras e de inúmeros ataques ao direito à saúde e ao direito à vida. É, também, um documento fundamental pela maneira exemplar como apresenta essas experiências ao trazer essas vozes para a partilha daquele conhecimento, já referenciado pelo Fernando Pigatto na sua fala anterior, e tudo isso a partir de uma referência freireana, da nossa tripla função de denunciar, anunciar e lutar.

Quero entrar no tema que me foi proposto, que é o direito à saúde no contexto da pandemia da Covid-19. Devo dizer que, ao pensar sobre o tema, tive dúvidas de como iniciá-lo. Mas essa decisão foi facilitada, nesse momento, pela apresentação do Relatório. É que normalmente, quando falamos do direito humano à saúde, há uma espécie de convenção, sobretudo nas apresentações – e não apenas nas apresentações acadêmicas, mas quando somos convidados para fazer apresentações em outros fóruns –, de começar usando uma expressão de Paulo Freire, por uma das formas de anunciar. Ela consiste em referir ou enunciar aquilo que têm sido as definições, ou as tentativas de definição, das proposições do que é o direito humano à saúde e todos esses direitos que são orientados para a proteção de vida.

Historicamente, há vários momentos em que apareceram essas definições. Lembro, por exemplo, a Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, e do seu artigo 25º, sobre a Saúde. Esta é uma das primeiras vezes que aparecem aquelas famosas definições da saúde, muitas vezes descritas como positivas ou ampliadas, segundo as quais saúde não é apenas ausência de doenças, mas também é uma situação generalizada de completo bem-estar. Isso incluiria, entre outros aspectos, em primeiro lugar, o acesso à atenção à saúde e, em segundo lugar, todas as condições que permitem realizar essa condição de bem-estar. E claro, ela abriu muitas discussões, houve muito debate sobre exatamente o que tudo isso significava.

Por exemplo: o que é o bem-estar? O bem-estar pode ser definido de muitas maneiras diferentes em muitos contextos distintos; há palavras diferentes para dizer isso.

As populações andinas, por exemplo, têm termos que muitas vezes são traduzidos como bem viver. Mas, de fato, eles podem ter significados diferentes em culturas diferentes, contextos distintos e, portanto, não foi possível nunca criar realmente um acordo sobre o que positivamente significava essa noção do bem-estar. E por isso, o que aconteceu muitas vezes, que, por um lado, a tentativa de realização do direito à saúde acaba se traduzindo, principalmente, na criação daquilo que é organização institucional, dos cuidados e da oferta dos cuidados através do quais se procura promover a saúde, prevenir a doença e também tratar e curar doenças e os agravos da saúde. E, por outro lado, numa formulação que foi usada muitas vezes, considera que a criação desse bem-estar geral implica, por exemplo, incluir saúde como uma dimensão de todas as políticas públicas. Sabemos que tudo isso, quando estamos ainda no domínio das proclamações, parece mais simples do que aquilo que depois acontece quando se procura efetivar.

Estas definições foram incluídas na constituição da Organização Mundial da Saúde, no final dos anos 40. Elas foram apropriadas em diferentes versões, incluídas em constituições nacionais. Muitos países têm consagrado o direito à saúde em suas constituições. A constituição Federal do Brasil de 1988 inscreve a saúde como direito de todos e dever do Estado. E neste aspecto, quando ela diz não só que é um direito de todos, mas um dever do Estado, é bastante mais precisa, mais específica do que a Declaração Universal e a própria Constituição da OMS. É assim definido como dever Estado e do conjunto da arquitetura das políticas públicas que se destinam a efetivar esse direito à saúde, seja através da atenção ou através das políticas públicas que procuram promover e proteger a saúde.

Defender a saúde no Brasil assenta, assim, numa definição que vai mais longe do que aquela encontrada em alguns desses documentos internacionais. Estes, muitas vezes, se abstêm precisamente de identificar com clareza o Estado e os entes públicos como sendo responsáveis também por assegurar as condições à realização do direito humano à saúde.

Sabemos também que a Constituição Federal de 1988, sobretudo no capítulo que inclui o tema da saúde, foi elaborada a partir das conclusões da 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986, a qual já incorporava muito daquilo que foram as lutas pela afirmação desse direito à saúde, entendido através dessas diferentes dimensões.

É importante, também, lembrar a criação do SUS, em 1988, e depois de um conjunto de leis dedicadas à efetivação do direito à saúde. Chamo atenção para a lei nº 9.836/99, a qual deu as condições para a criação de um subsistema de saúde cobrindo especificamente a saúde indígena e abriu o caminho para a posterior criação de diferentes programas dirigidos a populações com características e necessidades específicas.

Dentro dessa arquitetura, é importante mencionar, evidentemente, a criação dos organismos de controle social, em particular os conselhos de saúde. Estes foram sem dúvida cruciais para garantir e integrar, apesar de todas as dificuldades que apareceram pelo caminho, a participação e representação popular nas definições das orientações das políticas de saúde. Dessa forma, se conseguiu trazer para o coração da própria arquitetura institucional no Brasil o que era essa luta da afirmação do direito à saúde, da afirmação, também, das políticas que protegem a vida.

O que acontece hoje é que tudo o que referimos está sob um fortíssimo ataque em muitas partes do mundo, até mesmo naqueles lugares onde se julgava que havia uma consolidação dessas conquistas.

Isso mesmo depois de ter sido demonstrado que, na atual pandemia da Covid-19, a existência desses sistemas (que em Portugal ou no Reino Unido chamamos de serviço nacional de saúde e não sistemas de saúde) foi uma condição crucial para conseguir controlar a pandemia, evitando que ocorresse um número muito maior de mortes e de sequelas graves e que permitiu, portanto, conter a própria pandemia até existir esse recurso crucial que é a vacina.

A existência desses serviços públicos de saúde foi, sem dúvida nenhuma, uma das condições que sustentaram uma capacidade real de enfrentar essa situação, apesar de todas as dificuldades, apesar de todas as limitações e apesar de muitos erros que ocorreram em tantos lugares.

No Brasil, apesar de todos os ataques sofridos e da atual conjuntura, a existência do SUS permitiu dar uma resposta ao enfrentamento da pandemia que, sem o SUS, seguramente seria impossível.

O que é flagrante hoje é que, na medida em que vai havendo mais controle sobre a pandemia começam, também, a ressurgir os ataques contra os sistemas públicos de saúde. Esses ataques insistem na ideia de que “sim,” eles foram importantes, mas não foram tão eficientes quanto deveriam ter sido. Nesses discursos, afirma-se que, se houvesse, de fato, uma administração, uma gestão mais eficiente e uma maior capacidade de utilizar de maneira mais eficiente todos os recursos que existem – incluindo os do setor privado da saúde –, teria sido possível ter limitado ou reduzido os efeitos da pandemia na saúde da população. Por isso, concluem, é muito importante fazer reformas no sistema que sejam capazes de também introduzir medidas que garantam essa eficácia, que passa obrigatoriamente pelo protagonismo do setor privado e pela gestão privada da saúde.

Portanto, nós não podemos considerar sequer, neste momento, que alguns países, que têm seus líderes, que têm sistemas públicos de saúde, estão protegidos e estão salvaguardados dessa ofensiva que procura aproveitar a situação da pandemia e também das suas consequências para tentar, mais uma vez, impor uma lógica que visa, sobretudo, à garantia do máximo de rentabilidade para um setor da economia que chegou a ser considerado publicamente, por uma das figuras que estava à frente do setor privado da saúde de Portugal, o setor mais lucrativo depois do comércio das armas.

Este exemplo dá para termos uma ideia de como está sendo visto, pelo setor privado, o campo da saúde.

Estamos, de fato, em uma situação em que a luta está longe de ter sido ganha, apesar de todos esses avanços que se conseguiu nesse campo e nas diferentes regiões do mundo onde existem essas arquiteturas institucionais e esses serviços de saúde que permitem garantir o acesso, a atenção básica e a atenção de alta e média complexidade.

É por isso que, quando olhamos para relatórios como aquele que é apresentado hoje, nós verificamos que, muitas vezes, a discussão sobre o direito humano à saúde é uma discussão que se faz, sobretudo, a partir dos dois outros olhares que foram evocados: o olhar da denúncia, que é o olhar das violações, das privações do direito humano à saúde e também dos obstáculos e insuficiências da sua efetivação. Ou seja, uma efetivação seletiva e desigual, que gera exclusão, que reforça e reafirma a distância que continua existindo entre o que é proclamar esse direito e o que é tornar esse direito efetivo; mas há também outro olhar sobre o direito humano à saúde, que é o das lutas que diariamente são travadas não só contra as violações e privações, mas também pela reivindicação e afirmação do direito e também por muitas iniciativas através das quais se procura construir e fazer existir essa capacidade, de realizar e reafirmar o direito à saúde e o direito à vida.

Essas lutas assumem, como vimos nas diferentes falas acerca do atual relatório e também nas edições anteriores deste, formas bastante diferentes. Elas surgem de experiências de lutas, sofrimentos e enfrentamento de violências que afetam de maneiras distintas e, muitas vezes, com intensidade diferente muitas populações que habitam territórios diversos e diferentes tipos e grupos de pessoas que são tão diversificadas quanto a diversidade demográfica, social e territorial do Brasil.

Quando vemos esse relatório e acompanhamos sua apresentação, é possível perceber uma continuidade e uma persistência da condição da privação e da violação do direito humano à saúde, que é anterior à atual situação da pandemia.

Ela já se verificava anteriormente. Os relatórios anteriores são muito claros em relação a isso, sobretudo nos últimos anos, e em particular depois da aprovação daquela “PEC do fim do mundo”, que afetou de maneira bastante intensa, grave e violenta as perspectivas efetivas de financiamento da saúde, do sistema de saúde no Brasil.

Mas a pandemia veio agravar e potencializar essas condições e torná-las visíveis, muitas vezes, de uma maneira particularmente cruel e brutal. É aquilo que meu colega Boaventura de Sousa Santos chama de cruel transparência do vírus.

O vírus parece, de fato, ter mostrado, com uma clareza e transparência ampliadas, todas essas manifestações da violação do direito à saúde, do direito à vida. E as faz sentir de formas que nem sequer são pensadas habitualmente, quando não existe essa visibilidade, como estando relacionadas com as decisões e políticas tomadas no campo da saúde. Mas são políticas que afetam esse mundo. Por exemplo, um aspecto que já foi mencionado é o da injustiça e da inequidade no acesso às vacinas: 75% das vacinas que há no mundo são hoje aplicadas e estão disponíveis em 10 países, e a maior parte do mundo não tem acesso às vacinas. Se nós olharmos simplesmente para este episódio, que está sendo chamado de apartheid das vacinas, ele vem conferir ainda mais visibilidade a uma dinâmica que já conhecemos há muito tempo, que tem criado grandes desigualdades e exclusões entre diferentes continentes, regiões, populações e territórios.

Esta situação é ainda mais escandalosa quando lembramos que a pesquisa que possibilitou o desenvolvimento destas vacinas foi feita com financiamento público, e que as vacinas foram ensaiadas em diferentes regiões do mundo. Há, nesse momento, vacinas que estão sendo usadas nos países que nós chamamos de norte global que foram ensaiadas em países como África do Sul ou Brasil.

Isso acontece há muito tempo, com muitos medicamentos que depois se encontram, são distribuídos e são acessíveis nos chamados países ricos. Eles são fato ensaiados, testados por meio dessas organizações que realizam os ensaios clínicos para as grandes farmacêuticas.

E é chocante ver os lucros fabulosos das empresas farmacêuticas que estão se beneficiando das leis de propriedade intelectual e que continuam a ser apoiadas pela maioria dos países do Norte.

Recentemente, uma declaração do Presidente dos Estados Unidos, afirmando ser a favor da revogação temporária das patentes, não teve apoio por grande parte dos países europeus. Inicialmente, estes países tinham afirmado que não iriam seguir esse caminho; depois da declaração, disseram que iriam pensar a respeito. Mas quando olhamos para a política da União Europeia, verificamos que existe uma oposição ao levantamento das patentes, que corresponde, de fato, a uma proteção às farmacêuticas, e aos seus interesses financeiros, que se sobrepõem à necessidade de disponibilizar aquilo que é realmente um bem comum, um recurso essencial, nesse momento, para enfrentar essa situação de pandemia, que é a vacina.

Já se chama as vacinas de novo ouro líquido. Mas é um ouro líquido que vem acrescentado de outras formas que assumiu também essa riqueza, baseada no acesso desigual a recursos, como os medicamentos.

Esta situação confirma a consolidação de uma ordem mundial que surgiu da convergência de uma dominação capitalista que agora, na sua versão neoliberal, se caracteriza por uma intensidade no processo de acumulação do capital, que supera tudo aquilo que conhecemos historicamente.

Nela se reconhece, também, a persistência de formas de dominação colonial que geram, ampliam e intensificam diferentes formas de discriminação que existem hoje no mundo e que reemergem em muitas das discussões, debates e lutas no domínio da saúde.

A situação da pandemia vem confirmar e reforçar muito do que são os sinais e os traços desses processos. Um de seus efeitos é o que tem sido chamado de dinâmica sindêmica. Esta reforça os processos de natureza biológica, ecológica, social e política que produzem a doença e o sofrimento, e que através desses processos vão também gerar violações do direito humano à saúde, na medida em que grande parte dessas condições resulta da ação humana, especialmente a que vulnerabiliza populações, comunidades e grupos, e de decisões políticas que consolidam ou agravam essa vulnerabilização.

O caso do Brasil é, nesse momento, um caso exemplar pela sua extrema visibilidade e, também, a sua cruel transparência. Ele mostra o que pode advir de um governo que não só facilitou a propagação da pandemia e de todos os seus efeitos, mas também adotou uma política deliberada de privar os próprios cidadãos do acesso ao que necessitam para enfrentar essa situação e o exacerbar das ameaças à saúde e à vida que decorrem da pandemia – bem visível nos obstáculos ao processo de vacinação e às medidas de saúde pública.

É também importante, no entanto, sublinhar que não é só através das limitações ou recusas de acessos a recursos como as vacinas, equipamentos, diferentes medicamentos e equipamentos que são necessários para prestar o cuidado particular às pessoas afetadas pelo vírus que encontramos violações do direito à saúde e do direito à vida. Igualmente as limitações do acesso a sistemas públicos de saúde, seja por via de cortes de financiamentos, da privatização de serviços de saúde, são parte de um processo que ocorre há muito tempo e reduz muitas unidades de saúde que asseguravam uma resposta de primeira linha não só às condições de saúde e aos problemas dos cidadãos, mas também, às emergências de saúde. A privatização da gestão do universo da saúde, impondo a redução ou eliminação de serviços, muitas vezes de serviços de atendimento de urgência, por exemplo, acontece também nos chamados países de alta renda, levando à substituição de serviços públicos por diferentes tipos de hospitais-empresas ou por organizações sociais, seja qual for o nome que elas assumem nos diferentes países. Também intervenções de fundações e organizações que aparecem como entidades filantrópicas criam programas verticais de intervenção, programas dedicados a lidar com um problema de cada vez, sem olhar para o contexto geral das condições de saúde, das condições de vida que afetam a saúde e o bem-estar, e as condições de existência das populações a que são dirigidas as suas intervenções.

Em muitos casos, a forma de responder a emergências sanitárias onde não está garantido o acesso universal à atenção em saúde é a das respostas humanitárias, importantes, sem dúvida, para enfrentar os efeitos diretos e em curto prazo da crise sanitária, mas que não são dirigidas às condições que geram os problemas de saúde e às condições de sobrevivência das populações a quem são dirigidas essas intervenções.

Esta situação afeta de maneira específica o que chamamos o Sul Global. Não é apenas um Sul geográfico. Ele é constituído por todas aquelas populações que, mesmo dentro dos chamados países ricos, são afetadas por aquilo que tem sido chamado de intervenção inteligentemente seletiva em saúde.

Ou seja, existiria uma diferença entre as políticas e intervenções em saúde destinadas aos pobres e a quem vive em situações de exclusão, e as intervenções dirigidas a quem tem alguma forma de seguro de saúde, cobrindo o conjunto de suas necessidades e vivendo em condições que são substancialmente diferentes daquelas que afetam os setores excluídos e pobres da sociedade.

Mas encontramos, ainda, outra expressão dessa situação, que poderíamos descrever por meio do conceito de injustiça sanitária. Essa situação se tornou particularmente visível através da dinâmica social da pandemia. Ela é marcada pelo desrespeito às condições necessárias à sobrevivência, à dignidade, à saúde das populações e à sustentabilidade dos territórios onde elas vivem. Na sua raiz está a ausência, insuficiência ou deliberado sucateamento das políticas públicas.

Tomo aqui como exemplo a questão das condições de efetivação de medidas de saúde pública para enfrentamento da pandemia. No ano passado e neste ano, no dia 5 de maio, foi celebrado o dia Mundial da Higiene das Mãos, criado pela OMS. Nesse tempo de pandemia, a celebração desta data realça um aspecto de importância central para o enfrentamento de uma emergência sanitária de âmbito global, afinal, lavar as mãos deixou de ser simplesmente um ato de higiene pessoal ou higiene profissional, adquirido desde muito cedo através da socialização familiar e a educação, e aparece hoje como uma prática essencial para as respostas de saúde pública que procuram conter a infecção pelo coronavírus, conjuntamente com outras medidas sanitárias.

Uma estimativa da OMS aponta que a lavagem de mãos permite, mesmo na ausência de situações pandêmicas como aquela em que vivemos, salvar cerca de oito milhões de pessoas por ano.

Ela permite, por exemplo, reduzir o risco de contrair infecções em ambiente hospitalar e em unidades de saúde, e está também no centro das medidas de higiene associadas a muitas formas de trabalho e à higiene alimentar. Em algumas partes do mundo, lavar as mãos é uma prática que aprendemos muito cedo e que se torna um ritual rotineiro. Através dos cursos ou ações de educação oferecidos por autoridades de saúde neste Dia Mundial da Higiene das Mãos, seria possível vencer aquilo que, muitas vezes, é identificado como ignorância ou incompreensão da importância de lavar as mãos. E isso se manifestaria, geralmente, nas populações pobres e sem escolarização, majoritariamente presentes no hemisfério sul do planeta, mas também no hemisfério norte, entre as pessoas afetadas por carências de moradia ou acesso a condições básicas de existência. Por isso, seria muito importante ensinar a essas pessoas o protocolo de lavagem de mãos que encontramos nos cartazes afixados em instalações sanitárias.

Tornou-se claro, no entanto, que essas ações não garantem que, para uma parte considerável da população do mundo, seja viável o cumprimento desses protocolos porque uma das condições da vulnerabilização dessas populações e comunidades é a inexistência, por exemplo, de acesso à água limpa, de abastecimento e distribuição da água que permita lavar as mãos da maneira que é explicada e com a frequência que é aconselhável, assim como de sistemas de tratamento de água e saneamento, diminuindo o risco de contaminação.

Assim, só em determinadas partes do mundo que chamamos de áreas de sociabilidade metropolitana, é possível fazer rotineiramente esses gestos, considerados tão básicos, de lavar as mãos. Ou seja, somente em áreas em que existe um conjunto de condições de vida que incluem infraestruturas de saneamento e de fornecimento de água potável, que garantam condições dignas de existência. No entanto, para a maioria da população do mundo, não é garantido o acesso de forma permanente e fácil à água limpa e potável, sendo que muitas tarefas e gestos da vida cotidiana, a que nem sequer damos muito importância quando temos ao nosso alcance esses meios, passam a serem episódios de uma luta praticamente sem fim do acesso a um bem comum essencial à vida, um pilar crucial da saúde das pessoas, da saúde da sociedade, da saúde das comunidades.

E por isso, em muitas daquelas zonas que, em contraste com a sociabilidade metropolitana, chamamos de sociabilidade colonial, as pessoas que as habitam estão privadas de grande parte desses recursos, enfrentando na sua vida quotidiana a violência e a privação de condições básicas da existência. O acesso à água torna-se, nessas circunstâncias, algo contingente. Muitas vezes, a água é convertida em um bem escasso, privatizado, sem sistemas públicos de distribuição e acesso à água.

Para além desta privação ou limitação de acesso a um bem essencial como a água e da ausência de infraestruturas de saneamento, as mesmas políticas que geram problemas de trabalho, desemprego, de moradia, de privação de renda, precariedade, contribuem para ampliar e agravar as condições de saúde. A lógica neoliberal que preside a essas políticas afeta de maneira decisiva a saúde das populações e os seus direitos a uma vida saudável, o seu direito à vida.

Dessa forma, questões como o acesso a água e saneamento figura como um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Relatórios publicados pela OMS e UNICEF assinalam que há mais de dois bilhões de pessoas que não têm acesso garantido à água potável, e há três bilhões de pessoas que, nas suas habitações e nos lugares onde residem, não têm condições para lavar as mãos com água e com sabão. A maioria dessas pessoas vive em países que são classificados como de baixa renda, situados no Sul global.

E, mesmo em zonas em que há muita abundância de água, esta é muitas vezes apropriada para fins como a irrigação de monoculturas agrícolas, pastagens para criação de gado em grande escala, para atividades de mineração e, muitas vezes, também, para apropriação privada da própria água e para sua comercialização. Há lugares onde estão instaladas multinacionais que se apropriam privadamente da água, criando carência de acesso à água para a população local.

Tudo isto reforça a importância das lutas coletivas para proteção da água, da terra, da vida e da dignidade que, de fato, envolve hoje diferentes tipos de comunidades, movimentos, populações, incluindo em posição de relevo os povos indígenas e povos originários. A proteção da vida, a luta pela defesa da vida e a luta pela defesa da saúde são inseparáveis da luta pelo acesso a recursos tão cruciais como a água e as infraestruturas de saneamento.

Encontramos dificuldades semelhantes quando se procura o chamado distanciamento social. Como se pode fazer distanciamento social quando se vive em espaços exíguos e em moradias que não permitem a distância física entre as pessoas que nelas habitam? Como se pode, nessas condições, criar isolamento profilático ou manter a distância considerada segura para evitar o contágio e a propagação do vírus?

Nós sabemos que este é um problema que afeta, sobretudo, populações que vivem em zonas periféricas das cidades. Elas estão sujeitas a um conjunto de circunstâncias que, para serem resolvidas, não exigiriam grandes recursos baseados no acesso à medicina, a medicamentos, a vacinas e às medidas de saúde pública de resposta a emergências sanitárias, como a que estamos vivendo. A eficácia dessas respostas está dependente, em boa parte, da existência de condições de moradia e de organização de espaços urbanos orientados para a construção de formas de vida saudáveis e sustentáveis em territórios em que, no presente, as limitações e privações se acumulam.

Outros aspectos que nem sempre adquirem a visibilidade que merecem têm a ver, por exemplo, com as condições de acesso a serviços de saúde, mas também, de maneira mais ampla, às condições que permitam a mobilidade de pessoas idosas ou com limitações de mobilidade. O problema do acesso aos serviços de saúde, quando estes existem, é muitas vezes a disponibilidade de transportes e de apoio à mobilidade que permite aceder fisicamente aos serviços de saúde.

A luta pelo direito humano à saúde e pela justiça sanitária ainda tem um longo caminho a percorrer, enquanto não houver capacidade de responder às múltiplas situações e condições que interferem nesse direito e afetam a sua realização. É uma luta que se trava em muitas e diversificadas frentes. Ela inclui reivindicações pela democratização do acesso à saúde, dirigidas às instituições do Estado; a ação dos órgãos de controle social, como os conselhos de saúde; as ações extrainstitucionais, aquelas que ocorrem fora das instituições, através de mobilizações de populações, comunidades, movimentos sociais, resistência de lutas contra injustiças, contra a violência em suas diferentes formas e contra todas as formas de sofrimento injusto e desnecessário que decorrem destas diferentes formas de violência.

A violência nem sempre é exercida diretamente e de maneira brutal sobre os corpos, ainda que esta seja uma das suas manifestações mais visíveis. Ela é também violência estrutural, uma violência que reafirma e consolida as condições de desigualdade, de distribuição desigual de recursos, de precariedade da moradia, de precariedade do emprego e dos direitos de quem trabalha, de precariedade do acesso à renda, de precariedade do acesso à educação e do acesso às próprias instituições de saúde e à atenção à saúde. Esta violência gera um sofrimento desnecessário e injusto, e por isso evitável, que pode ser enfrentado por meio de medidas de promoção da saúde, e de proteção da vida, de uma política da vida que assente no reconhecimento do direito humano à saúde, mas que terá de entender a saúde como uma dimensão transversal a todas as políticas públicas.

A realização da justiça sanitária também se trava na luta pela capacidade de apropriar, produzir, partilhar as experiências e conhecimentos que nascem da resistência, da luta e do reconhecimento da diversidade dos modos de saber e conhecer, incluindo os saberes da medicina e da saúde pública, mas também os saberes e práticas do cuidado e da cura. A luta pela justiça sanitária é também uma luta pela justiça cognitiva, pelo enriquecimento dos conhecimentos que irão potencializar a capacidade de intervenção e de deliberação sobre as políticas de saúde.

O relatório hoje aqui lançado traz-nos muitos exemplos dessas lutas e do seu poder transformador.

Ele mostra bem a importância do conhecimento testemunhal, que permite ir além das abordagens da saúde, da doença e do cuidado próprias do conhecimento médico, especializado, profissional. O conhecimento médico tem pouca capacidade de falar do sofrimento e das experiências de sofrimento. Ele fala da experiência da doença, de certas patologias, mas não tem o mesmo poder de trazer a experiência de viver o sofrimento que depoimentos, histórias e outros testemunhos, e mesmo certas formas expressivas e artísticas.

Há também outra dimensão importante deste processo de luta pela justiça cognitiva, que é a afirmação do direito à apropriação e a partilha do conhecimento da medicina, da epidemiologia e das ciências sociais. São formas de conhecimento que devem ser apropriadas de maneira a servir a produção do direito à saúde e do direito à vida. Essa apropriação exige democratização desses saberes, entendida como a partilha com todos os protagonistas das lutas pela saúde, mas também a democratização e descolonização das próprias instituições em que se formam os profissionais, convertendo-as em instituições nas quais os próprios profissionais de saúde e as pessoas que trabalham nessas instituições e produzem conhecimento para poder deliberar e tomar decisões sobre políticas de saúde, conheçam os interesses e as necessidades das populações, comunidades e os diferentes grupos da sociedade que mais sofrem e que mais expostos estão às diferentes formas de violências, incluindo a violência institucional, que tantas vezes é exercida, sem como tal ser reconhecida, pelas próprias profissões e instituições que a deveriam servir.

Um processo desse tipo passaria, por exemplo, por transformações no recrutamento e no acesso às universidades e às instituições onde se formam os profissionais e as pessoas que produzem o conhecimento em saúde. Houve já iniciativas que vão nessa direção como, por exemplo, a criação de cotas no acesso à formação superior, contemplando aqueles setores e populações que estiveram historicamente afastadas das universidades. Mas ampliar o acesso é um primeiro passo – a transformação do próprio conhecimento e das condições que o orientem para o objetivo da promoção da saúde e de uma saúde dirigida aos setores mais vulnerabilizados da sociedade.

Só assim será possível respeitar e garantir o direito dos grupos sociais, comunidades, povos, movimentos sociais, que têm suas próprias historias, histórias de experiências que são elas próprias experiências criadoras de conhecimento. Só assim será possível evitar que essas histórias sejam suprimidas, silenciadas ou desqualificadas, ou os seus saberes expropriados pelos saberes dominantes, privatizados e transformados em recursos terapêuticos protegidos por patentes.

Como dizia Paulo Freire, é necessário trazer as experiências e os saberes dos lugares, das comunidades, dos coletivos, onde sempre se criam e se aprendem, na experiência de tecer a vida. É a partir dessas experiências, como ele afirmava na Pedagogia da Indignação, que se começa a produzir um outro tipo de saber, um outro tipo de conhecimento, comprometido com essa promoção da justiça cognitiva e sanitária e do direito à saúde.

O caminho para a justiça cognitiva na saúde passa, pois, pelo reconhecimento dos diferentes saberes e práticas do cuidado e da cura, incluindo a própria medicina moderna, em diálogos que alimentam uma leitura do mundo, como dizia Paulo Freire, que permita reconstituir o que muitas vezes os saberes oficiais ou dominantes suprimem, ocultam, silenciam, invisibilizam, sendo que esses diálogos, também, nos ensinam a reconhecer e a ler.

É importante também reaprender a utilizar, a partir dessas novas leituras, todos aqueles materiais que neste momento correm o risco de deixar de ser produzidos como, por exemplo, os censos, as estatísticas de saúde ou a informação epidemiológica, e de diferentes documentos oficiais que se tornam uma fonte muito importante também para termos um olhar, uma aproximação de quais são essas desigualdades, de quais são as diferenças que podem gerar discriminação e exclusão existentes na sociedade.

Daí também a importância da defesa das próprias instituições que produzem esse tipo de materiais enquanto objetivo das lutas na saúde, contribuindo para que a produção desses materiais contemple também a produção relevante de informação que sustente a luta pelo direito à saúde. Neste processo, aparecem as condições de emergência do que Boaventura de Sousa Santos designa por ecologias de saberes e de práticas do cuidado que permitem, tanto na ação institucional como na ação extrainstitucional, valorizar testemunhos, relatos e expressões de experiências de sofrimentos, de resistências e de lutas, sem as quais as vozes das subjetividades resistentes e rebeldes correm o risco de serem engolidas pelas concepções que hoje predominam na saúde, entendendo esta como obrigação e responsabilidade individual, a que é fundamental opor uma outra concepção de saúde, plasmada na Saúde Coletiva, com o enfoque nas condições sociais, na saúde, doença e cuidado como processo e na promoção da saúde e na atenção centrada na saúde da família e na saúde comunitária. A transformação das sociedades em que vivemos em sociedades saudáveis e sustentáveis constrói-se contra a ênfase na responsabilização individual e no projeto de cobertura universal de saúde, pela defesa dos sistemas públicos baseados na universalidade, integralidade e democraticidade e na promoção da saúde em todas as políticas como direito de todos e dever do Estado, como está consagrado na Constituição Federal de 1988. Por aqui passa a luta pelo direito humano à saúde.

4. Debate

Na sequência o seminário prosseguiu com o debate entre os/as participantes a partir das questões trazidas pelo prof. João Arriscado. Optamos por não transcrever os mesmos para preservar o momento específico do seminário.

5. Encerramento

Valdevir Both, coordenador executivo do CEAP, após encaminhamentos e pactuações agradeceu a presença de todos/as no seminário e encerrou o mesmo.

Sumário