Saúde em pauta: o conceito de saúde para as tradições de matriz africana

O conceito de saúde para os povos tradicionais africanos foi um dos temas da 2ª Etapa do Curso de Formação de Educadoras e Educadores do Projeto Participa+ realizado em novembro de 2024.

A integração entre o corpo, a mente, o espírito e a ancestralidade

A religião é um dos principais pilares da sociedade, manifestando sua influência de diferentes formas. Embora haja diferentes religiões e crenças, as religiões tradicionais de matriz africana são marcadas por um panorama histórico que remete a um passado de preconceito e ignorância. Uma voz que nem sempre foi ouvida, gerando inúmeros conflitos e formas de violência. Contudo, na medida em que a sociedade avança no combate ao preconceito às religiões de matriz africana, elas  passam a ser mais valorizadas e reconhecidas, inclusive no âmbito da saúde, onde os terreiros e rituais são utilizados para auxiliar no tratamento de diversos problemas de saúde, além de serem reconhecidos como locais de acolhimento a quem enfrenta a doença. 

O Bàbálórìṣà do Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre, Hendrix Silveira, que também atua como professor, afroteólogo e escritor, conta que nas tradições de matriz africana, a saúde é concebida como um estado de harmonia integral entre corpo, mente, espírito e ancestralidade, chamada de orixalidade. “Essa visão holística reconhece que o bem-estar é alcançado quando o indivíduo está em sintonia com as divindades, seus ancestrais e a comunidade. A ontologia dessas tradições concebe o ser como parte integrada de todos esses aspectos, enfatizando a interconexão entre o físico e o espiritual”, diz.

A abordagem apresentada por Silveira contrasta com a visão ocidental, oferecendo uma perspectiva mais abrangente sobre saúde e a cura. “Para nós, a saúde é interconectada ao corpo físico, à mente, ao espírito e à ancestralidade, tanto a respeito dos nossos antepassados quanto a respeito da nossa orixalidade, que são os nossos antepassados míticos, os orixás. Então, é a conexão entre todos esses aspectos que promove a saúde para nós”, explica.

Hendrix Silveira é Bàbálórìṣà do Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre

Divindades

O pesquisador explicou que não há um orixá específico voltado para a saúde e que a religião acredita em um Deus único. “Nós somos monoteístas, acreditamos que a gente tem apenas um Deus que chamamos de Olodumarê e ele que cria os orixás e divide tarefas para que eles cumpram. E cada orixá recebe uma tarefa diferente, o que faz com que eles se complementem na manutenção do mundo e dos seres humanos. Então, nós acreditamos que eles são divindades, mas não divindades em um conceito teológico cristão que é algo intrínseco ao próprio Deus”, pontuou. 

Doença

A doença é vista pelas matrizes africanas como algo externo e por isso são realizados rituais de reconexão com as divindades, com os antepassados, pois os povos de terreiro acreditam que podem expulsar a doença e assim restabelecer a saúde. 

Conforme Silveira, na cosmologia iorubá, Arun é uma das entidades Ayogun, representando a doença como uma força de adversidade. Dessa forma, a doença é vista como um sinal de desequilíbrio que se manifesta no corpo, na mente ou na alma. “Arun pode resultar de uma desconexão com os ancestrais, um rompimento com as forças divinas ou até mesmo um ataque de forças negativas. Para nós, a doença é um ser, mas a saúde não, porque a saúde é entendida como parte da vida, onde ela é para ser saudável e boa. Então, algumas concepções teológicas e outras tradições religiosas que atribuem sofrimento como algo inerente à vida não existem na tradição africana. Para nós, o sofrimento não faz parte da vida e por isso não nos acomodamos com relação ao sofrimento de qualquer tipo, por isso buscamos sempre superar o sofrimento e a doença”, disse. 

Os adeptos da religiosidade acreditam que cada orixá ajuda na composição da cura, ou seja, na expulsão de Arun. “Por isso nós cultuamos Xapanã ou Obaluaiê que é o orixá que tem um poder muito grande sobre o Arun e por isso nós cultuamos para que ele mantenha o Arun afastado de nós”, explica. 

Conceito de Exunêutica

Pesquisador sobre a afro-religiosidade, Silveira conta que desenvolveu durante seu mestrado o conceito de Exunêutica, metodologia de interpretação a partir da concepção da matriz africana para todas as coisas. “Muitas vezes quando se pensa estruturalmente uma religião, se tem o Cristianismo como um modelo, chamei isso de Cristianocentrismo, sendo outro conceito que desenvolvi no meu mestrado. A hermenêutica é um conceito que tem a ver com Hermes, deus grego da comunicação, onde as pessoas só entendem como as coisas são a partir do momento em que Hermes as ensina. Percebi que é como Exu, por isso o conceito de Exunêutica. Então, eu queria traduzir os conceitos que a teologia instrumentaliza para a tradição africana”, contou. 

Para nós, a saúde é sempre integral e holística, onde o ser humano é o corpo, a mente, o espírito e também a sua ancestralidade, que se divide em uma ancestralidade biológica e mítica que chamamos de orixalidade. “Eu sou descendente dos meus antepassados biológicos, mas também sou descendente das divindades que contribuíram para eu existir e por isso sou Hendrix de Oxalá, ou seja, somos parte da família dos orixás. Isso fica evidente quando olhamos uma pessoa e vemos características do orixá dela, por conta do comportamento e até mesmo feições”, disse. 

Silveira explicou que as cores, símbolos, vestimentas e rituais possuem um propósito, inclusive a comida. “ Para nós, o ser humano tem seis almas e a primeira delas é o Ori, que se divide em várias partes. O Ori, que é a nossa cabeça, é a primeira a nascer, por isso é mais importante. E também é por isso que os rituais africanos são todos feitos sob a cabeça. Esses rituais são realizados com a ideia de nutrição, porque nutrir é manter a saúde. Tudo na tradição africana tem comida, nós oferecemos comida para os orixás para que eles também se nutram”, afirmou. 

Alguns livros de autoria de Hendrix Silveira

Orixás

Os Orixás são vistos como divindades, atuando como guardiões da saúde física, emocional e espiritual, mediando os processos de cura e de proteção, desempenhando um papel vital na manutenção da saúde. “Essa visão cosmológica influencia diretamente as práticas de saúde, onde os rituais, oferendas e orientações específicas são utilizadas para restaurar a harmonia entre os diferentes aspectos da vida. A saúde, portanto, é vista como um reflexo direto da relação do indivíduo com o mundo espiritual. Os orixás Chapã, Osani e Exu são orixás que podem fazer com que o remédio que a pessoa tome seja ativado dentro do organismo e vá para o lugar certo para que o medicamento funcione”, disse. 

Os dias da semana têm um significado especial para os povos de terreiro, onde cada dia é dedicado a um orixá. “Na segunda é dia de Bará, na terça Xangô, na quarta Xapanã, na quinta Ogum, na sexta Iemanjá, no sábado Oxun e no domingo Oxalá. Esses orixás são cultuados em todo o batuque do Rio Grande do Sul nesses dias. Lembrando que os orixás não são os elementos da natureza, eles vivificam a natureza. A natureza existe, porque os orixás existem. Se um ser humano destruir o planeta, os orixás continuam existindo, mas se um orixá morrer, a natureza que ele reage morre com ele. Então, o papel de um sacerdote, de um pai, de uma mãe de santo é de manter o cosmo vivo”. 

Jogos e rituais

Esta visão ressalta a importância de práticas como o jogo de búzios para diagnóstico espiritual e a invocação de orixás. A compreensão de Arun destaca a necessidade de políticas de saúde inclusivas que reconheçam a medicina espiritual e os valores de bem-estar das tradições de matriz africana. 

“Algumas pessoas acham que jogar búzios é prever o futuro. Mas, na verdade, o jogo de búzios olha para o passado. 

Reencarnação

O corpo é visto como um aspecto físico da saúde, incluindo o bem-estar fisiológico e a ausência de doenças. A mente é a saúde mental, emocional, o equilíbrio psicológico e a clareza de pensamento. E o espírito é a conexão com o divino, a harmonia espiritual e o alinhamento com as forças cósmicas. Silveira explica que o presente é o tempo importante, porque o futuro se constrói no presente. “As tradições que cultuam a ancestralidade não possuem a ideia de reencarnação, o culto ao ancestral é o culto à consciência da pessoa, ao que a pessoa é. Após a minha morte, serei cultuado como ancestral da minha família, mas o meu ‘Émí’ pode retornar como um descendente, ou seja, emoções que retornam”, disse. 

Macumba, batuque e o preconceito

Os termos como “macumba” e “batuque” são muitas vezes vistos com preconceito, assim como a atuação dos terreiros. Contudo, Silveira explica que na maioria das vezes é onde as pessoas encontram acolhimento e auxílio. “ Uma pessoa chega com qualquer tipo de doença, a gente não vai ficar questionando como a pessoa pegou. Para nós, não importa isso e sim como resolver. A gente joga búzios que vão nos ajudar, assim como a atuação do médico ocidental. Fazemos a macumba que ajuda, mas orientamos que ela siga tomando medicamento”, disse. 

Silveira destaca que a macumba é um ritual que atua como prática alternativa. “Todos nós sabemos que macumba, na verdade, não tem nada a ver com feitiçaria ou com coisa ruim. Macumba é um nome genérico de uma árvore de Angola, que eles utilizaram para fazer um instrumento musical. O nome do instrumento é macumba e daí quem toca o instrumento é um macumbeiro. E esse instrumento era utilizado muito no Rio de Janeiro, e é por isso que a religião africana no Rio era chamada de macumba. E, claro, a palavra macumba, como era muito conhecida, foi demonizada, mais ou menos como o batuque aqui no Rio Grande do Sul”, contou. 

Saúde complementar

Apesar da predominância da  concepção biomédica no Brasil, as tradições de matriz africana oferecem um modelo de saúde complementar, onde a espiritualidade é integrada à vida cotidiana. No entanto, esse modelo enfrenta desafios no sistema público de saúde, que ainda não reconhece integralmente o valor das práticas tradicionais e espirituais para a saúde. “Muitos adeptos dessas tradições enfrentam discriminação ao buscarem serviços de saúde convencionais, onde suas religiosidades e práticas são frequentemente marginalizadas. O preconceito e a falta de entendimento desses sistemas culturais levam à desconfiança mútua e ao uso reduzido de certos serviços de saúde”, comenta. 

Políticas públicas e inclusão da saúde espiritual

A implementação de políticas públicas que respeitem e incluam as tradições de matriz africana é crucial para uma saúde pública inclusiva no Brasil. Ações afirmativas que incorporam práticas e curas tradicionais no SUS são passos essenciais nessa direção.

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