Centro de Educação e Assessoramento Profissional

João Arriscado Nunes, de Portugal, participa de dia de formação do CEAP

Atividade contou com a participação de professores e representantes de instituições, entre eles o presidente do CNS e OPAS/OMS

Na última sexta-feira, 26, foi realizada mais uma etapa da formação de mais de 30 educadores e educadoras do CEAP, que irão multiplicar conhecimentos por meio de oficinas destinadas à conselheiros municipais e estaduais de saúde e movimentos sociais de todo o Brasil.

O grupo começa a trabalhar em 27 estados brasileiros a partir de abril, pela primeira vez de forma presencial-virtual, oferecendo capacitação com o objetivo de fortalecer os processos de participação e controle social na saúde pública.

A etapa formativa contou com a participação de João Arriscado Nunes, sociólogo, professor Catedrático de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, co-coordenador do Programa de Doutoramento “Governação, Conhecimento e Inovação”, integrante de diversos núcleos de pesquisa espalhados pelo mundo. Suas experiências se concentram em áreas de estudos de ciência e de tecnologia, investigação biomédica, ciências da vida e da saúde pública, da sociologia política, Direitos Humanos e teoria social e cultural.

Mobilização social

Arriscado destacou a importância da convergência entre o trabalho do CEAP, seus estudos na luta pela saúde, mobilizando as forças populares no Brasil. “Até que ponto podemos compreender o que acontece no mundo, a maneira como se criam as desigualdades, como surgem formas de exclusão e a partir disso diferentes formas de resistência e luta”.

Na perspectiva do professor, a mobilização social é importante para superar a perspectiva teórica, eurocêntrica e colonialista que ignora as desigualdades sociais, as diversidades culturais, produzindo invisibilidades para ambos os setores sociais principalmente fora do eixo capitalista europeu e norte-americano, chamada pelo CES como ‘Epistemologia do Sul’. “Isso nos foi colocado na maneira como aprendemos sobre os problemas e o tipo de relação das diferentes forças, com perspectivas em diversidades e diferentes formas de conhecimento”, disse.

Uma nova perspectiva a partir da Epistemologia do Sul

João Arriscado conta que o Centro de Estudos Sociais, com sede em Coimbra, Portugal, foi criado a partir destas experiências, por um grupo com fronteiras fluídas, coordenado pelo professor Boaventura de Souza Santos e até hoje agrega colaborações de vários tipos com pessoas que fazem pesquisa, projetos e educação popular, ativistas e lideranças de movimentos sociais, quilombolas, distribuídos em várias partes do mundo. No Brasil ele citou a questão dos povos indígenas, quilombolas, mulheres, trabalhadores em situação precária, informais, do campo, um universo de grupos e de comunidades que de fato sofrem estas diferenças de poder e diferenças de distribuição de renda, de acesso à cidadania. “Formas de sofrimento são resultado de violações à cidadania e ataque aos direitos humanos que se manifestam através de diferentes formas de violência, visíveis e menos visíveis, como a estrutural, que muitas vezes é menos reconhecida e que resulta da forma como está organizada a sociedade, as diferentes formas de poder, da economia, da ocupação do território, como se dá um conjunto de condições básicas de vida, como moradia e acesso à infraestrutura. A violência estrutural nem sempre é reconhecida, mas que geram sofrimento. São diferentes formas de criar desigualdades como a desigualdade de acesso a certo tipo de recurso. Lembro que a desigualdade começa se transformar em outra coisa quando ela se converte em exclusão”.

O professor citou dois tipos de exclusão: abissal que é uma negação do direito a ter direitos, gerando situações de maior impacto na vida das pessoas e não abissal, onde este reconhece que as pessoas têm direito e que podem lutar pela sua realização, mas que elas precisam permanentemente lutar para que seja reafirmado o conhecimento dos direitos, o que pode ser que nunca seja viabilizado, o que obriga a uma interminável luta por acesso à serviços básicos como infraestrutura, água, sanemaento… “A exclusão abissal trata o sujeito como se ele não existisse, como se estivesse fora da sociedade, onde o trata como uma ameaça ou como uma existência desigual que pode ser tratada como caso de polícia, como caso de caridade, de quem não é reconhecida a cidadania. Quando pensamos no que significa lutar por direitos temos que procurar conhecer que tipo de obstáculo, dificuldade existe no caminho de quem procura lutar por um direito. Quando olhamos para essa exclusão pelo viés do direito à saúde, o primeiro objetivo é ver as pessoas como sujeitos de direitos e criar condições para que possam ser incluídas, por meio do acesso à cuidados que podem ser ocultados através de soluções precárias. Um exemplo são os “consultórios de rua” que permitem que mesmo com exclusão abissal algumas faixas da sociedade tenham acesso ao atendimento. Há certos lugares que uma parte muito considerável da população se encontra em situação de exclusão abissal, muitas das periferias das grandes cidades encontramos esta condição. O Brasil é um exemplo. Então é importante ver como as pessoas enfrentam estas situações a partir de suas experiências para resistir, sobrevier nestas condições e de suas mobilizações para tentar alterar esta situação. E este é o significado da palavra lutar. Qualquer ato de afirmação de liberdade ou de resistência a uma situação de sofrimento ou pressão em certas condições pode transformar-se em uma ação coletiva”, explicou.

Arriscado citou o exemplo de uma mulher negra, que vive em uma periferia de uma grande cidade e que todo dia pega transporte para ir trabalhar para pessoas que vivem em um bairro de classe média. E, apesar de todas as dificuldades, apesar de viver no limite, vai em busca de seu sustento como forma de afirmar sua capacidade de viver, lutar contra aquilo que é uma situação limite. Esta luta, este tipo de afirmação é uma resistência e faz parte desta luta.

João Arriscado Nunes tem estudos em ciência, tecnologia, investigação biomédica, ciências da vida e da saúde pública, da sociologia política, Direitos Humanos e teoria social e cultural

Injustiça social e injustiça cognitiva

No mesmo sentido o professor cita a injustiça social e injustiça cognitiva, o que resulta da negação das experiências e do direito de certos grupos sociais de contar suas próprias histórias, em seus próprios termos. Estas experiências são consideradas como folclore e não como experiências ou capacidades destes grupos sociais no mundo contemporâneo. “A injustiça cognitiva é caracterizada pela diversidade de experiências de conhecimento e o direito à sua história. É considerado um tipo de conhecimento difuso, menos valorizado do que a história dominante. Então lutar por justiça cognitiva é lutar para descolonizar os conhecimentos nobres. Quando se conta uma história que suprime informações como a dos povos indígenas, por exemplo, precisamos entender que é necessário trazer estas histórias que interrogam e interrompem as histórias dominantes. Temos a necessidade de descolonizar as histórias colonizáveis, ao mesmo tempo que sabemos que as monoculturas excluem conhecimentos que não são capazes de entender. O que não é entendido não é para ser entendido, não se abre espaço para o conhecimento. Desta forma devemos buscar saber o porquê não entendemos determinada situação e somos nós que temos que tentar compreender e não esperar que eles (os índios por ex) se façam entender. Tentativas de entender o mundo por meio de monoculturas não nos permitem entender as diferentes culturas”.

Acesso à justiça

Um dos questionamentos de João Arriscado foi em relação à garantia do acesso à justiça, conhecimento e práticas da medicina por parte da população, permitindo que se tenha acesso à todos os serviços e não a uma parte deles, especialmente aos recursos de grande complexidade e atenção. Também se referiu à necessidade de garantir acesso à formação a todos aqueles que tiverem condições básicas e não apenas àqueles que podem arcar com recursos próprios para entrar em escolas de medicina e enfermagem, por exemplo. “Num plano global isto significa todos os países terem políticas necessárias para momentos como o que enfrentamos agora, de crises. Os recursos da medicina também devem integrar os bens da sociedade e isso inclui a capacidade global à medicina e uma segunda questão que é reconhecer a diversidade de idiomas do sofrimento, do cuidado, da saúde. A noção do cuidado muitas vezes está ligada ao acesso, mas ele é algo mais amplo, pois cuidar é fazer tudo o que é possível para viver da melhor forma. A luta por justiça cognitiva é também entender uma nova noção de cuidado”, lembrou. Ele enfatizou a necessidade de uma ecologia que sustenta a vida e não uma ecologia que representa novas ameaças, como a criação de animais, por exemplo, onde temos respostas devido à pandemia na questão dos animais. Para Nunes, as terminações estruturais que estão na origem do problema de saúde que põem em risco a vida e a própria saúde. Precisamos ter procedimentos para construir o conhecimento adequado para lidar com esse tipo de problema”.

Uma das questões postas pelo professor-doutor foi o chamado “princípio da razão quente”, que nada mais é que a necessidade de aliar sempre razão e emoção. “A ideia de que só o conhecimento científico, da biomedicina e epidemiológico é capaz de trazer respostas para cada situação não é real. É a maneira como como identificam, definem e encontram formas de colaborar para encontrar uma resposta que os aproxima da ecologia dos saberes. É preciso trabalhar e procurar em conjunto uma forma de responder às questões e reconhecer que nenhum dos conhecimentos é completo por si só e não é uma resposta clara ao problema. Do lado da ciência podem haver posições diferentes. Precisamos encontrar formas de saber que permitam produzir respostas mais capazes. Na pandemia há um aspecto curioso, que foi uma contribuição importante de antropólogos, porque temos uma situação diferente em todos os tipos de pandemia: as relações de proximidade, cuidado, afeto, sociabilidade são as que criam os canais por onde vão se propagar os vírus. Ao limitar o contato físico podemos pensar na situação: para podermos conter o vírus será que temos que repensar a maneira como temos esta relação ou pensar em canais não centrais na nossa vida como, por exemplo, o uso das tecnologias. Esta última implica que se ultrapasse a questão instrumental e se comece a perceber que muito pode ser feito com a tecnologia e que nunca fizemos ou que fizemos de forma limitada”, finalizou.

Formação, pesquisa e sistematização

As formações do CEAP iniciaram em 2014 (1ª edição) e a 2ª edição que iniciou em 2019, 2020 e segue agora em 2021 com um novo modelo de ensino, o presencial-virtual, uma forma inédita de educação popular, um novo modelo de organização e sistematização de conhecimentos.

A diretora do CEAP, Elenice Pastore, lembra que o objetivo é possibilitar a implantação de um processo formativo, de pesquisa e sistematização no Brasil que busca transformar a sociedade em meio a uma pandemia mundial.

“O CEAP tem mais de 30 anos de trabalho com educação popular e em março de 2020, pela primeira vez nos vimos em um cenário bastante difícil. Tivemos que pensar um novo formato para a formação de lideranças, conselheiros e conselheiras de saúde que pudesse fortalecer os processos de participação social e contribuir para que tivéssemos no Brasil um controle social, com o fortalecimento do direito humano à saúde, algo complexo ainda mais neste momento. Procuramos pensar a saúde desde a garantia de condições básicas de sobrevivência, chegando ao direito a uma vaga em um leito de UTI. Pensamos em transformar este momento de pandemia num momento em que nos reinventamos junto com o Conselho Nacional de Saúde (CNS), a Comissão de Educação Permanente e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS). Educação popular sem encontros é um desafio e tivemos que nos empenhar em desenvolver materiais, mobilização e planos de pesquisa, plataformas, ferramentas e preparar esta formação, o que estamos fazendo neste período. Resistimos dentro de uma perspectiva do nosso mestre da educação popular Paulo Freire que afirmava que precisamos, acima de tudo, ter esperança e construir o inédito viável”.

Multiplicar conhecimentos para fortalecer o controle social

O coordenador executivo do CEAP, Valdevir Both, conta que o projeto de formação da instituição conta visa três grandes eixos: 1) a formação para conselheiros e lideranças que já atuam na defesa do SUS (70% conselheiros municipais e estaduais de saúde) e 30% representantes de movimentos sociais. 2) Pesquisa sobre o impacto da Covid-19 no exercício do Controle Social a partir de entrevistas realizadas com representantes dos conselhos estaduais e das Comissões de Educação Permanente dos estados. 3) a sistematização de experiências formativas, coordenada por Paulo Carbonari e Elenice Pastore. “Este trabalho se dá a partir do que foi e está sendo desenvolvido no marco da pandemia, como a construção do Relatório ‘O impacto da Covid nos Movimentos Sociais Populares’ a partir de 10 práticas de movimentos sociais, realizado pelo CEAP”.

De acordo com Valdevir, o desafio é olhar para o controle social na saúde a partir dos conselhos estaduais. “Os três eixos estão articulados a partir de uma grande pergunta: Como fazemos educação popular a partir das condições que temos, com o isolamento social e ferramentas online”?

Paulo Henrique Kujawa, coordenador das ações de pesquisa do CEP, que é um dos coordenadores da sistematização no CEAP, falou da importância da aproximação da instituição com o CES, a partir da assinatura de um convênio formalizado no último mês e da realização de um plano de trabalho que tem como objetivo a participação do CES nas atividades de pesquisa e formação. “Vimos a integração ao CES como uma experiência formativa de fundamental importância pela aproximação dos objetivos das instituições”.

O representante da Organização Pan-Americana de Saúde/OMS, Fernando Lelis, participou da atividade e agradeceu ao CEAP e ao CNS a parceria construída para o projeto de formação de controle social do SUS e a pesquisa, que segundo ele, é um tema que precisa ter destaque com um novo olhar. “Esta é a oportunidade para compartilharmos perspectivas e condições para garantir o direito à saúde para todas e todos”, destacou,

Presidente do CNS, Fernando Pigatto
Representante da OPAS/OMS participaram da atividade, Fernando Lelis

Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), destacou que o trabalho do CEAP é fundamental no controle do SUS e especialmente na garantia de direitos na área da saúde. “Como representante do CNS é uma satisfação poder integrar a formação do CEAP e estar com figuras de grande conhecimento na área que se preocupam com a questão da saúde especialmente agora com a gravidade que estamos vivendo diante da pandemia”.

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